Digamos que eu esteja vivendo aqui neste planeta com vocês há exatos 9.836 dias. Não é fácil fazer essas contas. Mas suponhamos que seja este o número de dias de vida que coleciono até aqui. Inspirando o ar, enchendo os pulmões e soltando-o milhares de vezes em cada um desses dias. Sem parar um dia só, um minuto sequer. Digerindo alimentos, expulsando excrementos, dormindo, distinguindo cores e formas, ouvindo sons e vozes. Tudo com a autonomia que chamamos de vida, com a energia gerada pelo meu próprio corpo, utilizando meus próprios recursos, nascidos comigo no dia em que a natureza me trouxe pra cá porque entendia que eu estava pronto.
O Bento está pronto.
Meu sobrinho nasceu às 7h55 do dia 15 de abril, com 3,215kg e 48cm.
E comprovar isso, com os meus próprios olhos, fez surgir em mim uma sensação que só não é melhor do que a que a minha irmã deve estar sentido. Assim mesmo, o que eu senti é inenarrável, é indescritível. O que eu senti é algo que se sobrepõe à razão pelo simples fato de que nem mesmo a razão sabe lidar com isso. Eu não soube, o dia todo, o que fazer com aquilo que estava dentro de mim, na região do peito. Dei o nome de alegria. Porque é assim que convencionalmente chamamos aquilo que é bom de sentir. Mas não é como se formar, ver um time de Porto Alegre ser bicampeão da Libertadores pela primeira vez ou praticar uma boa ação. É melhor que isso. Não, não é melhor. É outra coisa. É o que põe os animais a lamber as crias quando nascem. E se eu o tivesse lambido? Nem assim ficaria em paz. Nem assim. Naquele dia, no décimo quinto dia do mês de abril, naquele quarto de hospital, eu, criatura racional, com polegar opositor e tudo, não soube lidar com o sublime.
E vê-lo do alto, cabeça pequenina, e ir me aproximando até encostar lábios e ponta do nariz nos cabelos raros, e sentir o cheiro da sua pele fina, e perceber o seu calor vital, isso tudo, assim junto, quase me fez chorar. Contive. Como agora, enquanto escrevo e meus olhos se umedecem. Devia ter chorado eu acho. Já que não lambi, devia ter chorado. Homens e mulheres choram quando a alegria é demasiada. Mas nem isso me ocorreu. Porque nada me ocorria. As coisas ocorrem quando se pensa. E eu não pensava, eu sentia. E alguma coisa com a qual eu não sei lidar.
No dia que soube que o Bento havia nascido, antes de vê-lo, escrevi um texto para postar aqui na Uzina. Pra compartilhar com vocês. Um texto racional. Sobre o que representava pra mim o nascimento desse guri. Há poucos minutos, apaguei quase tudo para reescrever o que vocês lêem agora. Porque assim como não é possível explicar o que se sente, tampouco há chance de antever. Nunca entendi porquê temos nítidas, gravadas na nossa mente, algumas cenas antigas da vida. Como fotografias. Por que estas marcaram e outras, aparentemente mais importantes, não? Continuo sem saber isso. Mas sou capaz de apostar que o que vi no quarto daquele hospital, ao entardecer daquele dia, me acompanhará para sempre.
Pra completar, sou dindo do Bento. Aí foi alegria mesmo. Receber o título e ver a Samanta chorar de emoção foi bonito, foi alegre. Sou padrinho de Batismo dele. Do sacramento da Igreja Católica que inicia o crente na vida em comunhão com Deus. Este mesmo Deus que deu condições para que o meu afilhado estivesse pronto nesse momento. Inspirando o ar, enchendo os pulmões e soltando-o. Digerindo o leite materno, expulsando excrementos e dormindo. Baita responsabilidade.
O que é verdade também, é que tudo isso me deixou meio egoísta. Como se o Bento fosse o primeiro e o único a nascer. Sinto-me como se ele fosse mais do que só diferente de tudo e de todos, mas o único a surgir assim, desse jeito, nessa cor e nesse formato. Com os órgãos todos que funcionam como uma máquina nova. E ele ali, comandando tudo aquilo sem saber. Puro, orgânico, sem as influências, toxinas, sotaques e eletroportáteis dos humanos maus.
É curioso como o mais repetido fato social, o mais massificado, o mais batido, que não diferencia classe social, pode ser, ao mesmo tempo, a maior novidade de todas, o que há de mais novo, o fato mais notícia de todos.
No jornalismo, dizem que nada pode ser mais velho do que a notícia de ontem. E o que pode ser mais velho pra nós, ancestrais terráqueos, que o nascimento de um dos nossos? Mesmo assim, pra mim, o Bento é a mais especial de todas as notícias. E olha que já li muitas.
Ele está lá, naquele quarto de hospital, junto do seu pequenino coração, que palpita sem que ninguém dê corda ou recarregue as pilhas. Enquanto dorme, não sei com que sonha, mas já ouvi dizer que relembra o seu último e aconchegante lar. Ele lembrará pra sempre disso tudo. Cada dia que viver. Mesmo que o tenha feito mais de nove mil vezes, como eu. Mesmo assim. Lembrará sempre do seu útero luminoso e confortável.
Além de pronto, Bento é um ser amado. E isso, como o ar que a gente respira, é quase tudo.
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