A morte do grão de trigo – parte 1

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Às vezes, fala-se do amor como se fosse um impulso para a satisfação própria, ou um simples recurso para completarmos em moldes egoístas a nossa personalidade. E não é assim: amor verdadeiro é sair de si mesmo, entregar-se. O amor traz consigo a alegria, mas é uma alegria com as raízes em forma de cruz.

Enquanto estivermos na terra e não tivermos chegado à plenitude da vida futura, não pode haver amor verdadeiro sem a experiência do sacrifício, da dor. Uma dor que se saboreia, que é amável, que é fonte de íntima alegria, mas que é dor real, porque supõe vencer o egoísmo e tomar o amor como regra de todas e cada uma de nossas ações.”

– São Josemaria Escrivá

 

Começo esta reflexão central contando que durante grande parte da minha juventude, a cruz, o símbolo máximo do cristianismo, não me chamava a atenção. Ela era importante, claro, mas tinha em torno de si um conceito tão fechado, uma ideia tão acabada, quase uma obviedade, que eu não me atrevia a questionar ou a avaliar a importância que ela tinha na minha vida. Ela era a cruz, com toda sua imponência, mas ainda fazia pouca diferença pra mim.

Até o retiro do meu CLJ, o 24º CLJ de Canoas.

Incrível a nitidez da lembrança daquele dia. Cantavam “Ninguém te ama como eu” em uma das capelas do Seminário Maior de Viamão, enquanto eu olhava para a cruz com um novo olhar. Com o rosto úmido pela emoção, eu buscava entender o que significava aquele gesto. Por que dizem que Ele morreu por mim? O que isso tem a ver com amor? O que eu fiz de tão grave para que alguém tenha que morrer? E que diferença fez isso tudo? O que aquilo mudava na minha vida aquele dia? A cruz era um objeto e o seu significado apenas uma teoria. Faltava a experiência humana da cruz.

A dúvida estava longe de ser um ceticismo. Era simplesmente um motivo para eu não parar de buscar. Saí daquela capela envolvido em um sentimento que a linguagem não alcança e que por isso nem me esforçarei em tentar reproduzi-lo aqui. Quem viveu sabe o que é o despertar espiritual de um CLJ.

O tempo foi passando, e ao longo do caminho, fui me aproximando da cruz. Mesmo que nunca tivesse conseguido recolocá-la em uma caixa, com seu significado pronto, sem saber, eu compreendia que a minha relação com ela se daria como em um processo. Um longo caminho de aproximação.

Minha memória me indica que comecei a compreender a morte de Jesus Cristo pelo amigo Eduardo Beilner. Quando um dia, em uma de suas palestras, ele falava sobre o amor. Não, não se referia à esposa nem aos gatos aquele dia. Estávamos em um contexto de grupo de jovens, no CLJ ou no Cenáculo de Maria. Lembro de tê-lo ouvido dizer o seguinte: que o amor não é afeto, que amor é atitude, é decisão, algo assim. E depois não sei mais se o que eu lembro é a continuação da palestra do Dudu ou a minha própria elaboração sobre tudo isso. Nunca mais parei de pensar sobre isso e de sentir este novo significado a cada dia.

O amor, portanto, é a chave que leva à compreensão da cruz.

Mas aí chegamos a um novo problema – e não menos complicado do que a incompreensão da cruz: a ignorância com relação ao amor.

Foi necessário que eu percorresse um novo caminho até que isso ficasse claro. Faltava a experiência humana do amor.

Em abril de 2010, participei do 140º Cenáculo de Maria do Vicariato de Canoas, e lá conheci a história de um dependente químico em recuperação, que fazia o retiro pela primeira vez. Este encontro mudaria para sempre a minha relação não só com a causa da dependência química, mas com o tal amor.

Depois daquele curso, me envolvi bastante com trabalhos voluntários associados à prevenção, tratamento e recuperação de dependentes químicos, e conheci um programa que apoia familiares de usuários de drogas, chamado Amor-Exigente. E isso mudaria para sempre a minha forma de ver o amor – e de ver a cruz.

O princípio básico do Amor-Exigente é que o amor entendido como romantismo, afeto, carinho ou desejo do outro, este amor não existe. O que existe é romantismo, afeto, carinho ou desejo do outro. São coisas diferentes. Não são o amor. Quem auxilia um usuário de drogas a vencer o vício e reviver precisa amá-lo de verdade. Precisa praticar com ele o mesmo amor que o Dudu já tinha conceituado lá atrás: aquele que é comportamento, compromisso, decisão, atitude. Quem tem um filho, precisa praticar o mesmo tipo de amor. Quem tem uma esposa, um esposo, namorado, mãe, pai. Todos nós somos convidados a praticar este amor.

Porque o amor de Deus e o amor vivido por Jesus aqui conosco foi exatamente este. Não lembro de passagens bíblicas em que Cristo pega alguém pela mão para fazer algo. Todas as histórias de milagre, de grande cura, de grande libertação são de pessoas que ouvem seu chamado e decidem caminhar. Deus tem por nós não um amor conivente, facilitador, mas um amor que constrói porque exige nosso melhor, nossa escolha e nossa persistência.

Mas não é fácil praticar esse amor verdadeiro sendo humano. É praticando este amor que um pai é capaz de dizer que ama o seu filho, mas não aceita o que ele faz de errado. É este amor que ama uma pessoa pelo que ela é e pode vir a ser, e não pelo que se quer que ela seja. É este amor que permite que o familiar viva as consequências de seus atos como aprendizado da vida. Não é assim que Deus nos trata também? Sua mão está sempre estendida, mas ela precisa do movimento – muitas vezes doloroso, incompreendido – de ir ao seu encontro.

Expliquei que entendi a cruz por meio do amor, mas que antes precisava entender o amor. E entendi. O amor verdadeiro é o que dá a vida para que o outro possa viver plenamente. Numa situação em que é necessária uma correção ao filho menor, o amor verdadeiro entra em cena e o repreende. O filho chora, mas o pai sabe que, embora o desleixo fosse mais fácil, a experiência de não se deixar manipular foi o mais correto a se fazer. Neste momento em que o pai sofreu, morreu um pouco pelo filho, ele praticou o amor. Morreu como o grão de trigo. E gerou vida.

E a cruz, afinal? Ela é o sinal máximo do exemplo que Jesus Cristo nos deu: foi até o fim, derramou até a última gota de sangue e morreu para nos mostrar que somente assim, morrendo por amor ao outro, é que vamos construir ambientes mais respeitosos, famílias mais saudáveis e relações de paz.

Por isso, Jesus nos salvou, afinal. Nos salvou porque nos deu a receita vital: se o grão de trigo cai na terra e não morre, nos disse ele em uma de suas parábolas, ele não produz frutos, não gera vida. E disse-nos ele em outro momento: façam isso em memória de mim.

Ele entregou seu corpo e seu sangue como prova de que dá certo. A Páscoa da Ressurreição é a prova máxima de que dá certo. É este o amor que modifica o comportamento de alguém. Um amor que faz morrer em nós o egoísmo e as relações individualistas. Um amor que nos faz reviver a trajetória da semente, que, alheia às suas razões, às suas vaidades, morre para que a vida possa brotar.

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Juliano RigattiA morte do grão de trigo – parte 1
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Maria não é quem você pensa

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Bastaria à nossa fé o exemplo de entrega de Maria. De alguém que num belo dia recebe a visita de um anjo, que lhe informa que sua vida viraria do avesso, que ela seria levada a transgredir todas as normas morais da época e leis naturais da vida, que colocaria seu companheiro em maus lençóis, e que sua vida nunca mais seria a mesma – sem nem saber como seria esta outra vida; e ela prontamente se coloca à disposição. Entrega-se integralmente porque sabia quem fazia o convite e de onde vinha o chamado.

Só o desafio de trazer para nossa vida a força e desprendimento deste gesto já nos seria suficiente. Porque somos pessoas de muito pouca fé, como já nos jogou na cara o próprio Jesus. Confiamos, desde que saibamos onde estamos pisando. Acreditamos, desde que saibamos para onde estão nos levando. Arriscamos, desde que saibamos o tamanho do risco. Temos sempre nossas reservas, e enquanto as tivermos, enquanto elas forem a nossa segurança, nunca repetiremos o gesto de Maria, de quem se entregou voluntariamente aos planos de Deus. Lembram do jovem rico que foi conversar com Jesus? Ele contou que se considerava um homem exemplar, um sujeito correto, mas que não abria mão de suas riquezas, de suas reservas. Voltou triste, triste como era sua vida, mas não abriu mão do que lhe dava segurança.

Descobri, em um dos livros do Padre Haroldo Rahm, uma definição muito interessante para um modelo mental que alimentamos, muitas vezes, até o fim da vida, chamado habilidade de sobrevivência. Habilidades de sobrevivência são comportamentos que repetimos hoje porque em algum momento de nossa vida eles foram úteis para nossa sobrevivência. A timidez, por exemplo, pode ser uma habilidade de sobrevivência para aqueles que são inseguros com relação à sua personalidade, sua visão de mundo, suas opiniões. Geralmente, são pessoas que possuem uma forma especial de se expressar no mundo, diferentes da média dos demais. Podem possuir um talento desenvolvido, uma capacidade específica que se sobressai da maioria. E por isso se fecha, se exclui, se limita. Para sobreviver à crítica, ao olhar preconceituoso, à não aceitação. Porque todos queremos ser aceitos, participar dos grupos, viver em harmonia com os demais, ser acolhidos e queridos. E quando isso se põe em risco, acionamos uma habilidade de sobrevivência.

Jesus pode um dia, num retiro de CLJ, numa confissão, chamar este jovem tímido e dizer-lhe: sei que fazes o que é bom, sei que buscas a verdade, sei que honras teus pais, chegou a hora de confiar no amor infinito que Deus tem por ti, no amor daquele que te deu as capacidades especiais que tens, e viver a vida plenamente, porque foi para isto que foste criado. Ao ouvir tais palavras, o jovem vê-se em estado de perigo, o perigo do desconhecido, aciona sua habilidade de sobrevivência e, entristecido, sabota seu potencial mais uma vez e vai embora. Quem se apega ao conhecido, nunca conhecerá o desconhecido.

Certamente, Maria sentiu medo. Mas havia entre ela e Deus uma relação de intimidade tão bem desenvolvida que ela sabia que seus pensamentos e suas emoções não podiam impedi-la de viver plenamente a vida que Deus havia preparado. Teve fé.

Só este olhar sobre Maria já nos serviria como uma lição vital. O seu exemplo de entrega já seria o bastante para nossa condição de homens e mulheres sem fé.

Mas Maria é mais.

Comecei minha relação mais íntima com Deus indo às missas da igreja Nossa Senhora das Graças, em Canoas, da qual meus pais participam até hoje. E este título de Maria, com suas mãos sempre estendidas aos fiéis, revela a outra faceta de Maria à qual quero me referir: de alguém que intercede, que apoia, que ouve, que acolhe.

Em cada canto deste país, das maiores cidades até aquelas onde mora uma pequena porção de pessoas, é muito comum haver uma devoção especial a algum título de Maria, entre todos aqueles que sabemos que existem. São peregrinações, procissões, novenas e promessas em torno de imagens de Maria com seu gesto que manifesta prontidão. E o que há de mais comum entre todas estas devoções é exatamente o que, desde guri, identifiquei em Nossa Senhora das Graças: a sua imagem feminina de mãe, que recebe, que protege, que põe no colo. Para muitos de nós, Maria é esta dimensão de acolhimento da Igreja ou mesmo da relação direta com o sagrado. E todos precisamos de repouso, de um calor que consola, de um refúgio seguro para aqueles momentos em que a noite oprime e a espera pelo outro dia amedronta.

Mas, como disse no título deste texto, Maria não é quem você pensa que ela é. Não é só isso. Não é só alguém que, humana como nós, nos deu o maior exemplo de fé; nem só a figura materna que nos embala e protege sob seu manto sagrado. Maria é muito mais.

Se observarmos bem, durante todas as passagens bíblicas que a citam, fica claro que Maria tinha por Jesus Cristo, e tem por cada um de nós, um tipo de amor muito diferente do que aquele a que estamos acostumados a conviver em nossas relações. Gosto de olhar para o comportamento de Maria ao longo de toda subida de seu filho ao local da crucificação, e deixar vir à mente cenas do filme A Paixão de Cristo, de Mel Gibson. O papel que ela cumpre ali pode nos fazer olhar para o modelo de mãe que ela construiu desde o dia em que o filho se perde no templo, desde o dia da festa de casamento em que o vinho acabou.

Maria é um modelo de amor verdadeiro. De um amor que, por mais que sinta vontade, não impede o filho de fazer suas escolhas; que, por mais que deseje, nunca percorre o caminho pelo filho; que, por mais que sofra, nunca permite que o seu sofrimento seja razão para que o filho não aprenda as duras lições da vida.

Em entrevista na Rádio Aliança durante um tempo pascal, o Padre Eduardo Delazeri disse conhecer as três maiores dores do ser humano, que segundo ele são a traição, a ingratidão e a injustiça. “Não há nada que doa mais. Doem muito mais que uma fratura exposta de um osso nosso; e digo isso porque eu já tive uma fratura exposta, e também já fui traído, já fui injustiçado e já foram ingratos comigo”, contou ele. Maria, em sua sabedoria, sabia que seu filho sofreria, antes de morrer, as maiores dores que um filho pode experimentar na vida. E não impediu que isso acontecesse. Maria viu Jesus ser condenado à morte injustamente; viu a ingratidão de seu povo com ele; e viu a traição de Judas, e a negação de Pedro. Volto ao filme para lembrarmos da expressão de Maria vendo seu filho ser julgado e condenado pelo povo, vendo seu filho ser açoitado, cair com o peso da cruz, completar a subida e ser morto, e morte de cruz.

Não me refiro aqui a um amor omisso, descomprometido, negligente. Mas a um amor silencioso. Maria sofreu e silenciou. E em seu silêncio nos faz pensar, como diz a bela e inesquecível canção “Prece universal à Maria”, do Padre Júlio Gotardo.

Somos muito apegados às coisas e especialmente às pessoas que amamos. Quando alguém morre, dizemos que perdemos alguém. Mas isso não pode justificar em nós um comportamento que atrapalhe a experiência de vida de quem amamos.

Maria sabia que sofrimento era o que Jesus havia de passar. Sabia que, por mais que sofresse, não caberia a ela fazer qualquer tipo de intervenção. Ou queríamos nós que Maria tivesse impedido o calvário de seu filho? Que história de vitória da morte sobre a vida teríamos para contar?

Maria sabia que classificar o sofrimento como negativo, e a alegria como positiva, é uma limitação de nosso tempo. Na floresta virgem, onde tudo parece caótico ao olhar do homem da cidade, a vida muitas vezes nasce de uma matéria putrefata, podre, em decomposição. Temos uma lógica do funcionamento da vida bastante peculiar, cultural e restrita ao nosso tempo e espaço. A dor, o sofrimento, a morte são indefectíveis, inevitáveis, pessoais e intransferíveis. Como o sorriso, a alegria e a vida.

Portanto, Maria é mais do que você pensa. Ela é entrega e é acolhimento, mas é ensinamento do verdadeiro amor. Aquele que permite a você fazer suas escolhas, carregar suas cruzes, cair seus tombos e morrer suas mortes. Sem impedi-lo. Para vê-lo mais lúcido no momento das escolhas; mais forte no momento das cruzes; mais resiliente nos tombos, e mais consciente nas grandes perdas. O Calvário nos ensinará a viver, como diz outra bela canção, “Coração de mãe”, da cantora Mariani.

Primeiro foi Deus que nos amou desta forma. Deu-nos a vida, com seus momentos doces e amargos, e nos convidou a vivê-la plenamente. Depois, quando precisou estar mais próximo de nós, pediu que Maria, gente como a gente, nos deixasse esta grande lição.

 

(Neste momento, como oração, sugiro que você ouça a canção “Prece universal à Maria”. Depois, assista ao clipe “Coração de mãe” e, na sequência, reze uma Ave-Maria, como forma de acolher da Mãe os seus maiores dons: a entrega, o carinho e o amor. Shalom!)


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Juliano RigattiMaria não é quem você pensa
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