Há um rato na sala

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Era uma vez uma família.

Um dia, enquanto conversavam na sala, um berro, um grito agudo os interrompeu. “Que foi???”, a filha encarou a mãe. “Um rato!!!”, respondeu-lhe aquela senhora pálida, do alto de sua histeria e de sua cadeira. Acuado, o pequeno intruso congelou entre a estante e a caixa de som. Só os observava. Nem mesmo  se atrevia a mexer o rabo. Prendeu a respiração. Seis pares de olhos o observavam igualmente paralisados. “Tu vais esperar quantas horas, pai?”, questionou a filha adolescente, exigindo uma atitude. “Não!!!”, a mãe interrompeu a reação do pai, “e sujar a parede?!”. “Então o que vocês querem?”, revoltou-se o filho, pegando, do chão, um pé do tênis. “Deixem ele”, falou o pai, com toda sua autoridade de pai. O rato soltou o fôlego. “Essa noite, montarei uma ratoeira e amanhã cedo tudo estará acabado”. Satisfeitos, todos se desmobilizaram e o bichano desapareceu por baixo da TV.

Havia um rato naquela sala. Assustada, a família queria eliminá-lo dali. Agiram como todos agiriam. Afinal, o rato era o problema. A solução, portanto, era acabar com aquele roedor assustado e restabelecer a paz.

Ao menos até que outro rato aparecesse.

Só há ratos onde há restos de comida, onde há sujeira, onde há lixo exposto. Mas aquela família ignorou essas circunstâncias e depositou a atenção no intruso. É assim que a sociedade costuma agir com seus problemas estruturais. Em consequência, é assim que aprendemos a agir contra a epidemia da dependência química: ainda estamos tentando matar o rato que está na sala.

É preciso avançar. É preciso investigar o que o trouxe e o que o sustenta. Que testemunhos pai e mãe deram a seus filhos? Que comportamentos inadequados a família cultivava antes mesmo da droga chegar? Que maus hábitos são comuns até hoje? A família está disposta a mudar as suas atitudes se o dependente aceitar o tratamento? E quando ele voltar, como será? Em todo lar em que a droga faz um doente há inúmeras perguntas como essas sem resposta. E, lamentavelmente, há milhares de outras famílias, pobres, ricas, com ou sem vivência religiosa, em situação de risco. Mais cedo ou mais tarde, enfrentarão o mesmo drama.

O rato precisa ser eliminado? Claro que sim. Transitando pelas salas de nossos lares, ele pode atrair outros roedores e insetos e transmitir doenças até aos vizinhos. É preciso alertar a população para aos malefícios das substâncias químicas? Claro que sim. Mas isso é muito pouco. O fato é que em uma sociedade desestruturada, com valores superficiais e famílias desnorteadas, o vazio existencial surgirá e a droga será a alternativa de muitos, mesmo que saibam de seus males e de suas consequências.

Famílias, voltemos à cozinha! Vamos em busca do que não está certo, dos restos de comida, do lixo da omissão, dos maus hábitos e dos maus exemplos. Deve haver muita sujeira na despensa, deve haver filhos legislando, permissividade em excesso e falta do amor que ama, mas que não aceita o que está sendo feito de errado.

Há um rato na sala, sabemos que há. É preciso que reconheçamos que ele é só um sintoma inevitável de problemas muito mais graves.

(Artigo publicado em setembro de 2011, e parte integrante do livro “O CLJ me enganou”.)

Juliano RigattiHá um rato na sala
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O meu presente para o mundo

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Estávamos em quase 30 homens sentados em roda naquela tarde nublada e de temperatura amena no CRIC – Centro de Recuperação Imaculada Conceição. 

— Vocês sabem que dia comemoramos ontem, dia seis de janeiro, em todas as igrejas cristãs do mundo? — perguntei.

— Dia de Reis, um residente sentado ao meu lado logo respondeu.

— Exato, o dia em que, guiados por uma estrela, os três reis magos encontraram o menino Jesus recém-nascido, ajoelharam-se, o adoraram e entregaram de presente ouro, incenso e mirra.

E o que aquilo teria a ver com a vida e o tratamento de cada um deles, e com a vida de cada um de nós? 

Antes, li para eles o trecho do segundo capítulo do evangelho de São Mateus, que narra a bonita cena.

Os reis haviam sido atraídos e conquistados por uma grande e brilhante estrela. Como os dependentes químicos que me ouviam. Derrotados pela droga, seguiram uma estrela que havia pousado sobre o CRIC, indicando que ali seria encontrado o Salvador, junto de sua mãe, Maria. Como nós. Uma estrela nos guiou até onde estamos, no caminho da verdade e da vida.

Em seguida, falamos sobre o desfecho da passagem. Sobre o momento em que os reis entregam ao menino seus presentes, aquilo que tinham de mais valioso.

— O que vou propor a vocês nesta tarde requer tanta coragem quanto a que foi necessária para seguir a estrela até esta Comunidade Terapêutica. Quero que pensem em seus dons, em seus talentos, naquilo que vocês sabem fazer, que gostam de fazer, que faz vibrar o coração, que faz aquecer o peito. Todos nós temos algo em nós do qual as circunstâncias precisam para ficarem mais completas. O mundo precisa para ser mais humano. Os irmãos precisam para serem mais inteiros.

E prossegui.

— Quero que pensem em um objeto que representa este dom, este talento, e que está aqui na Comunidade. Algo que vocês possam ir buscar e levar até a capela onde nos reencontraremos. 

E os liberei. Fui até o carro, peguei meu objeto e fui até à bela construção reservada às celebrações e orações. 

A capela do CRIC já passou por inúmeras reformas e transformações ao longo dos anos. Está mais bonita do que nunca. 

Quando cheguei, a maioria dos residentes já estava ali, sentados nos bancos, com seus objetos em mãos, muitos com a cabeça entre os joelhos, como se buscassem no fundo do peito um local mais silencioso, um pouco de paz. Em um dos primeiros bancos, sem que eu houvesse pedido, um deles tocava violão e cantava uma bonita canção. Deixei. Aquilo já era uma resposta ao que havia pedido a eles.

Em silêncio, acompanhei um a um deixar sobre o altar o seu presente para este mundo. Do mais lúdico aos mais prático.

Mais uma vez fiquei pensando no que sempre penso quando estou com eles: o que os diferenciava de mim e daqueles que não têm esta doença crônica. 

No fim de tudo, vai valer o mesmo para todos: o valor do presente que demos ao mundo.

Juliano RigattiO meu presente para o mundo
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É bela a vida que se dá

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Somos todos diferentes. E embora sejamos únicos, há algo comum em nosso interior: a presença de Deus. Um Deus que quer se realizar neste mundo por meio de nós, usando nossa luz, dando sabor com o nosso sal.

E ser sal e luz do mundo é isso: gastar-nos sendo nós mesmos, atendendo ao chamado particular que Deus nos faz a cada dia. 

Gosto do exemplo simples da vela. Ela foi criada para iluminar. Sua cera a põe de pé com este único propósito. Quanto mais ilumina, mais morre. Quando mais morre, mais permite aos outros enxergar as maravilhas deste mundo. E isso não lhe dói; pelo contrário, a vela é um exemplo de plenitude: é feliz gastando-se em sua missão.

Somos chamados a ser vela. Mas não é fácil. Não é fácil ouvir o chamado no meio de tanto barulho, de tanta distração, de tanta efemeridade que nos é vendida como tesouro. Não é fácil identificar o chamado e assumi-lo em uma realidade em que o valor humano não é medido pelo coração. 

Como diz o Padre Fábio de Melo, “precisamos dilatar as consciências que temos acerca de nossas verdades. É assim que Deus ganha espaço em nós. Quanto mais conscientes do que somos, fazemos e podemos, muito mais próximos estaremos da realização para a qual fomos projetados”.

Você e eu fomos projetados para a felicidade. E a nossa felicidade reside no sutil e delicado ponto onde se encontram dois aspectos de nosso eu: aquele que nos realiza e aquele que deixa o mundo um pouco melhor.

Neste dia 13 de maio de 2017 completo 35 anos. Rogo a Deus que, com a intercessão de Nossa Senhora de Fátima, me dê saúde e inteireza para sempre me realizar em uma vida que é bela porque se dá.

Juliano RigattiÉ bela a vida que se dá
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