Rondando a macieira

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Cheguei pro Bento, meu afilhado de oito anos, e o convidei para o aniversário do filho de um amigo. Ele os conhecia de vista. Fez cara de dúvida e não me respondeu na hora. Eu disse que tudo bem se ele não quisesse ir, que era só um convite. Dias depois, tendo que dar um retorno ao meu amigo, mandei uma mensagem à minha irmã, mãe do Bento, pedindo que ela o consultasse sobre o convite que fiz. “Não quer ir”, me disse ela, “mas não te disse porque não queria te chatear.”

Naquele instante, quando li a resposta da minha irmã, imediatamente, o Bento deixara sua primeira infância, e ingressara em uma nova e irreversível fase da vida. Ao menos eu reconheci naquele instante esta transformação. Porque a mais importante característica de uma criança é a sua inocência, sua comunhão integral com Deus, a ausência de dualidade, sua ignorância sobre o bem e o mal. Você faz uma pergunta a uma criança e ela, na sua cara, diz se gosta ou não gosta, se quer ou não quer. Esses dias uma amiga postou o vídeo da filhinha, de dois anos e meio, vestida de prenda e experimentando chimarrão. Tomou um gole e disparou: “Não gostô!”, e devolveu a pequena cuia.

O Bento não me respondeu na hora em que o convidei porque reconheceu a existência do bem do mal; como nós, adultos, fez um julgamento da situação, e não quis fazer sua escolha. Viu-se dividido, enxergou o bem, mas percebeu também a possibilidade do mal.

Regressamos ao livro de Gênesis, Antigo Testamento da Bíblia, e sua narração simbólica sobre o surgimento desta divisão. O diabo, seu inventor, colocara no meio de um belo jardim a maçã, e inaugurara naquele momento o maior dilema da humanidade deste então: o poder de escolha entre a graça e o pecado. Porque desde lá, nunca mais, desde mais ou menos a idade do Bento, conseguimos permanecer em comunhão com o que é um, com Deus. Vivemos espreitando o pecado, o caminho curto, o atalho. Vivemos nossa vida buscando a reconexão com o sagrado, com o divino, buscando entrar em contato com o Deus que nos habita, para nos afastar da terra e experimentar o céu.

Só há poucas semanas (sim, demorei!), tive o prazer de conhecer uma das mais belas poesias gaúchas sobre a História da Salvação, chamada “Paraíso Perdido”, de autoria de Jayme Caetano Braun, e interpretada pela banda Rock de Galpão. Deixo abaixo um vídeo que encontrei e os seus preciosos versos. Não deixem de ler com atenção cada linha. Deliciem-se neste 20 de setembro.

Paraíso Perdido
Jayme Caetano Braun

Quem já leu o livro santo
Conheceu o que é preciso
Entendeu o paraíso
Que era um lugaraço e tanto
Na realidade o encanto
Dos tempos de antigamente
Ali não havia doente
Todo mundo era sadio
Céu e campo – mato e rio
E primavera somente!

Que beleza de lugar
Diz a sagrada escritura
A lua de graça – água pura
Sem beniagá a incomodar
Sem imposto pra pagar
Sem as filas – sem bandido
Sem congresso – sem partido
Ontem – hoje e amanhã
No meio disso – a maçã
Que era o fruto proibido!

É o bicho mais burro o “home”
Pois tudo corria bem
Ninguém roubava ninguém
Ninguém trocava de nome
Ninguém morria de fome
Nem havia o diz que disse
Foi preciso que existisse
Um asno nessa canaã
-Adão comeu a maçã
Embora Deus proibisse!

E a gente logo imagina
Pois tudo foi de improviso
A sombra do paraíso
Coberto pela neblina
A Eva – um florão de china
O pai Adão – cabeçudo
Índio grosso – sem estudo
Desajeitado – sem roupa
Viu a maçã “dando” sopa
E comeu – com casca e tudo!

E formou-se a confusão
Depois desse desacato
A Eva se foi ao mato
E logo atrás o Adão
Resultado – a punição
Que tanto transtorno encerra
Veio a doença – veio a guerra
Veio a miséria – a ganância
E nasceu a discordância
Nos quatro cantos da terra!

E o Senhor disse ao Adão
Já roído pelo desgosto
Tu vais – com o suor do teu rosto
Comer – de hoje em diante – o pão
Sentir frio – dormir no chão
A vida será uma luta
Daí toda a lida bruta
Decretada a cada um
-Vivemos nesse zum-zum
Só por causa de uma fruta!

E foi criado o inferno
O verão – a primavera
O medo – a mentira – a fera
A geada, o frio do inverno
Além disso o padre eterno
Deixou que o homem sofresse
Que amasse – que envelhecesse
E vivemos do serviço
E – depois de tudo isso
Só ia ao céu quem merecesse

E seguiu a mesma farra
Numa verdadeira afronta
E ninguém pagava a conta
Cantando que nem cigarra
Com cordeona – com guitarra
A cousa seguiu fervendo
Deus terminou compreendendo
Ante a falta de respeito
Que a seguir daquele jeito
O inferno acabava enchendo!

E mandou Nosso Senhor
O Menino de Belém
O que em cada Natal vem
Trazer carinho e amor
Mas o homem – pecador
Ao qual o dólar seduz
Não quis compreender a luz
Da fé e da fraternidade
Jesus falava em verdade
E o pregaram numa cruz!

Conta a Sagrada Escritura
E a gente acredita nela
Que o Autor da mensagem bela
De carinho e de ternura
O que trazia alma pura
Em todas as dimensões
O Autor de mil sermões
De montanha e descampado
Acabou crucificado
No meio de dois ladrões!

E o homem que fez então
Depois da morte sublime
Ao invés de expiar o crime
Num pedido de perdão
Ou tentar a salvação
Do inferno e da fogueira
Chorando à sua maneira
O Paraíso Perdido
Muito embora arrependido
Seguiu rondando a macieira

 

Juliano RigattiRondando a macieira
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