A nossa ditadura

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A geração dos nossos pais viveu a ditadura da censura. Não existia liberdade na forma como conhecemos hoje. Nem de longe.

Lembro de ficar assustado a primeira vez que li a história sobre o irmão do músico Nei Lisboa, desaparecido em meio à repressão. Depois nunca mais consegui ouvir uma das músicas do Nei do mesmo jeito. Era triste e forte demais. Um pouco antes, tinha conhecido a história de Olga, que a TV dramatizou. Ali, conheci os instrumentos dos militares e as formas de tortura. Esses dias, vejam só, no Faustão, acompanhei o relato de Caetano Veloso sobre o tempo em que ficou em uma solitária, depois no xadrez, depois exilado. Que tempo difícil comparado à liberdade que temos hoje.

Mas tudo isso só seria mais difícil de compreender e de aceitar se não vivêssemos este tempo. Estamos como presos soltos depois de décadas de clausura. Não sabemos como lidar com tamanho número de opções. A liberdade nos assusta. Nosso lastro horizontal de opções aumenta a cada dia sem que possamos (ou saibamos ou queiramos) aprofundar, verticalizar qualquer conhecimento.

Meus pais não sabem conviver com esta abundância de possibilidades de escolha. Foram acostumados a contentar-se com o pouco que a vida lhes deu e com o outro pouco que conquistaram a duras penas. Nós temos de tudo.

Não sabemos mais o que é ter de folhear uma enciclopédia; o Google nos responde qualquer coisa, com mais informação e mais rápido, às vezes até o que não queremos ver. As crianças não precisam mais economizar folha de papel e giz de cera; os aplicativos de tablet e smartphone dão suporte infinito à criatividade. Os jovens não sabem mais se devem escolher uma única faculdade; as universidades criaram formas de se estudar de tudo um pouco, transitando por qualquer curso. Escutar música não é mais ligar pra rádio e pedir a preferida, ou juntar grana para comprar o CD; os serviços na web são acesso a to-das as músicas, de to-dos os artistas. Eu parei de escutar porque não sei o que escolher. Brincadeira. Não, é sério. As profissões não são mais as mesmas, as demandas são outras, os clientes não têm gênero definido, seus comportamentos variam muito na mesma geografia, os escritórios se mudaram para as casas ou para uma mesa onde todos comungam a mesma cafeteira, a mesma internet sem fio e escutam a conversa do coworker concorrente. As empresas estão em dúvida se investem em mais treinamento, em aumento de salário ou na compra de um videogame e pufs coloridos para pôr no novo espaço de lazer que substituiu o fumódromo, e está ao lado da geladeira transparente com cervejas artesanais que não são mais só para sexta-feira. O consumo está muito mais acessível. Lembro que um tablete de chocolate me durava (tinha que durar) uma semana; hoje, duram uma sentada, e têm 18 variedades de sabores, de tamanhos e de país de origem. As religiões sérias, antes valorizadas por indicar a possibilidade do transcendente, por dar sentido à nossa experiência humana neste planeta, agora são condenadas por limitar o relativo. O álbum de fotos de depois das férias, antes restrito a 12 poses surpresas, viraram a obrigação de postar em alguma rede social uma selfie ou um flash, selecionado entre outros seis e que dura 24 horas, a cada instante memorável. E o momento seguinte, outrora reservado ao desfrute da paisagem ou da companhia (ou ambos), é ocupado pelo acompanhamento dos likes, ou seja, do quanto a memória que era para ser só sua agradou a todos.

Para o Humberto Gessinger e o Tiago Iorc, “é gente demais, com tempo demais, falando demais e alto demais. Todo dia, a gente queima mil bibliotecas de Alexandria”. Sem backup ou pasta alguma na nuvem.
Mesmo com tudo isso, muitas vezes não vamos a lugar algum, não sabemos qual destino escolher. E quem não sabe onde quer ir, vocês sabem, qualquer resultado de busca na internet serve. Nosso sonho é que inventem um cardápio com só dois pratos e duas bebidas. Ou que escolham por nós. Como a criança que reconhece os limites impostos pelos pais como um gesto de amor, queremos um carinho da vida, que ela nos ajude a optar. Não sabemos o que rejeitar. Ou queremos de tudo. Porque temos que entrar e participar. Nossos pais queriam escolher e não podiam. Nós podemos mas não sabemos o que fazer com essa tal liberdade. Dizem que vivemos a economia da atenção, nossa curiosidade dura 9 segundos; se não interessou, mudamos de canal — da TV ou do Youtube. Muitos devem estar longe desta crônica há horas, aliás. Cada momento é uma prova de múltipla escolha que consome o que resta de nossas energias.

O que era para ser o paraíso das possibilidades, o harém do poder de escolha, virou a ditadura da liberdade.

Juliano RigattiA nossa ditadura
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