Ciúmes do Fernando

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O meu sobrinho Bento, que já está crescido, levou para casa, dia desses, o seu amigo Fernando. Fernando conheceu a família, jantou com o Bento e dormiu no mesmo quarto que ele. Só que Fernando não é um amiguinho da escola, Fernando é um boneco de pano. Um boneco de pano com tamanho de gente. Acompanhei flashs dessa experiência pelo Facebook da minha irmã, a mãe do Bento. Acho que não vi tudo, mas o suficiente.

Não entendo nada de pedagogia infantil, mas entendi perfeitamente a razão pela qual essa atividade foi proposta ao meu afilhado. E funcionou: eu senti ciúmes do Fernando. Ciúmes de alguém que vê o Bento na escola na hora em que ele está na escola — e não é pelas lentes de uma câmera de monitoramento ou pela foto enviada pelo Whatsapp. Ciúmes de quem enxerga as gargalhadas espontâneas do Bento e a velocidade com que o Bento corre entre as paredes e as roupas coloridas de seus coleguinhas em busca de absolutamente nada.

Senti ciúmes de quem vê o Bento lanchar, vê o Bento aprender, vê o Bento conversar, enquanto alguém tenta ensinar. Tenho ciúmes de quem convive com o Bento nessa idade em que tudo o que há de mais importante acontece sem marcar hora, sem chamar para conversar, sem pedir vem cá e me conta como foi a escolhinha hoje.

Tenho ciúmes de quem pode dar ao Bento o tempo que ele precisa, de quem chega e vai embora com ele. De quem sabe o que o Bento janta num dia qualquer, que não sejam os seus pais. Ciúmes de quem vive a rotina do meu afilhado numa época em que ele não sabe o que é a rotina e em que os dias têm tamanhos e alegrias bem diferentes dos meus dias de adulto.

Por fim, tenho só a repetir a vocês que, pelo Fernando, sinto ciúmes, e pela pedagogia infantil, passo a ter admiração. Obrigado pela lição. Genial.

Juliano RigattiCiúmes do Fernando
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Só o Bento salva

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Estou longe de ser pai, mas sabem que esses dias eu pensei na sensação que deve ter um bebê? Nas coisas boas de se ter um, claro. Estava eu no mictório do banheiro da empresa, indo embora, quando lembrei do Bento, o meu sobrinho. Minha cabeça quase latejava de tanta preocupação, com tanta coisa que não dera certo, que me deixavam desgostoso com a vida. E lembrava do Bento a cada pouco. E pensava em vê-lo quando chegasse em casa. Mesmo que soubesse que ele não estaria lá, me esperando, pensar no Bento e na forma como ele leva a vida, me transportavam dali.

Com pouco menos de um mês entre a gente, o Bento vive para sustentar o seu corpo e – por que não dizer? – a sua mente. Para o Bento, este mundo novo é habitado por apenas dois únicos seres: o seio da minha irmã – ah, se ele desconfiasse que são dois! – e as cólicas do seu tubo digestivo. Chora, porque é a sua única forma de comunicação, e logo vê seu desejo ser atendido. Dorme e sonha com alguma coisa que eu nem desconfio o que seja. Meu palpite é que ele veja um seio, bem grande e farto de leite. Porque às vezes, enquanto dorme, sem saber, o Bento sorri.

Gente, o Bento ainda nem sabe que suas mãos existem. E não sabendo que tem mãos e que tem pés, tampouco tem noção de seus pensamentos. Quando eu olho pro Bento e tenho a convicção que nada mais passa pela sua mente ao não ser o desejo de se alimentar, confesso que dá uma inveja boa.

Porque será que em algum trecho da nossa vida, alimentamos nosso cérebro com a noção do caos? Por que será que sempre as coisas têm a possibilidade de darem errado? Por que o nervosismo antes da prova ou antes da apresentação, mesmo nos casos em que você tem a plena convicção de que domina o conteúdo? Por quê? Sei que há explicações da ciência, da psiquiatria e da psicologia que dão conta de quase tudo. Mas tenho direito de desejar que um dia meus pensamentos trabalham apenas a meu favor, assim como trabalham pra mim minhas mãos e minhas pernas.

Volta e meia me pego pensando no Bento. No quanto o amo e no quanto invejo o estágio da sua existência. Nos dias em que nada dá certo e que a cabeça não ajuda, penso no Bento. Nesses dias, só o Bento e a sua singular forma de existir salvam.

Juliano RigattiSó o Bento salva
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Rebento!

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Digamos que eu esteja vivendo aqui neste planeta com vocês há exatos 9.836 dias. Não é fácil fazer essas contas. Mas suponhamos que seja este o número de dias de vida que coleciono até aqui. Inspirando o ar, enchendo os pulmões e soltando-o milhares de vezes em cada um desses dias. Sem parar um dia só, um minuto sequer. Digerindo alimentos, expulsando excrementos, dormindo, distinguindo cores e formas, ouvindo sons e vozes. Tudo com a autonomia que chamamos de vida, com a energia gerada pelo meu próprio corpo, utilizando meus próprios recursos, nascidos comigo no dia em que a natureza me trouxe pra cá porque entendia que eu estava pronto.

O Bento está pronto.

Meu sobrinho nasceu às 7h55 do dia 15 de abril, com 3,215kg e 48cm.

E comprovar isso, com os meus próprios olhos, fez surgir em mim uma sensação que só não é melhor do que a que a minha irmã deve estar sentido. Assim mesmo, o que eu senti é inenarrável, é indescritível. O que eu senti é algo que se sobrepõe à razão pelo simples fato de que nem mesmo a razão sabe lidar com isso. Eu não soube, o dia todo, o que fazer com aquilo que estava dentro de mim, na região do peito. Dei o nome de alegria. Porque é assim que convencionalmente chamamos aquilo que é bom de sentir. Mas não é como se formar, ver um time de Porto Alegre ser bicampeão da Libertadores pela primeira vez ou praticar uma boa ação. É melhor que isso. Não, não é melhor. É outra coisa. É o que põe os animais a lamber as crias quando nascem. E se eu o tivesse lambido? Nem assim ficaria em paz. Nem assim. Naquele dia, no décimo quinto dia do mês de abril, naquele quarto de hospital, eu, criatura racional, com polegar opositor e tudo, não soube lidar com o sublime.

E vê-lo do alto, cabeça pequenina, e ir me aproximando até encostar lábios e ponta do nariz nos cabelos raros, e sentir o cheiro da sua pele fina, e perceber o seu calor vital, isso tudo, assim junto, quase me fez chorar. Contive. Como agora, enquanto escrevo e meus olhos se umedecem. Devia ter chorado eu acho. Já que não lambi, devia ter chorado. Homens e mulheres choram quando a alegria é demasiada. Mas nem isso me ocorreu. Porque nada me ocorria. As coisas ocorrem quando se pensa. E eu não pensava, eu sentia. E alguma coisa com a qual eu não sei lidar.

No dia que soube que o Bento havia nascido, antes de vê-lo, escrevi um texto para postar aqui na Uzina. Pra compartilhar com vocês. Um texto racional. Sobre o que representava pra mim o nascimento desse guri. Há poucos minutos, apaguei quase tudo para reescrever o que vocês lêem agora. Porque assim como não é possível explicar o que se sente, tampouco há chance de antever. Nunca entendi porquê temos nítidas, gravadas na nossa mente, algumas cenas antigas da vida. Como fotografias. Por que estas marcaram e outras, aparentemente mais importantes, não? Continuo sem saber isso. Mas sou capaz de apostar que o que vi no quarto daquele hospital, ao entardecer daquele dia, me acompanhará para sempre.

Pra completar, sou dindo do Bento. Aí foi alegria mesmo. Receber o título e ver a Samanta chorar de emoção foi bonito, foi alegre. Sou padrinho de Batismo dele. Do sacramento da Igreja Católica que inicia o crente na vida em comunhão com Deus. Este mesmo Deus que deu condições para que o meu afilhado estivesse pronto nesse momento. Inspirando o ar, enchendo os pulmões e soltando-o. Digerindo o leite materno, expulsando excrementos e dormindo. Baita responsabilidade.

O que é verdade também, é que tudo isso me deixou meio egoísta. Como se o Bento fosse o primeiro e o único a nascer. Sinto-me como se ele fosse mais do que só diferente de tudo e de todos, mas o único a surgir assim, desse jeito, nessa cor e nesse formato. Com os órgãos todos que funcionam como uma máquina nova. E ele ali, comandando tudo aquilo sem saber. Puro, orgânico, sem as influências, toxinas, sotaques e eletroportáteis dos humanos maus.

É curioso como o mais repetido fato social, o mais massificado, o mais batido, que não diferencia classe social, pode ser, ao mesmo tempo, a maior novidade de todas, o que há de mais novo, o fato mais notícia de todos.

No jornalismo, dizem que nada pode ser mais velho do que a notícia de ontem. E o que pode ser mais velho pra nós, ancestrais terráqueos, que o nascimento de um dos nossos? Mesmo assim, pra mim, o Bento é a mais especial de todas as notícias. E olha que já li muitas.

Ele está lá, naquele quarto de hospital, junto do seu pequenino coração, que palpita sem que ninguém dê corda ou recarregue as pilhas. Enquanto dorme, não sei com que sonha, mas já ouvi dizer que relembra o seu último e aconchegante lar. Ele lembrará pra sempre disso tudo. Cada dia que viver. Mesmo que o tenha feito mais de nove mil vezes, como eu. Mesmo assim. Lembrará sempre do seu útero luminoso e confortável.

Além de pronto, Bento é um ser amado. E isso, como o ar que a gente respira, é quase tudo.

Juliano RigattiRebento!
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Espelho meu exclusivo: o Bento

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Como podem ler no Rebento!, o meu sobrinho Bento nasceu há pouco. E já é um ilustre entre os meus. E por isso já está aqui na série de entrevistados da Uzina. Confiram, abaixo, entrevista exclusiva obtida no seu primeiro dia entre nós, direto do quarto do hospital onde está, em Porto Alegre.

A palavra mais bonita da língua portuguesa
uma que ouço mamãe repetir toda hora para me acalmar: bento

A mais feia
todas as que eu entendo são lindas!

O pior defeito da nossa sociedade
furadeira. é esse o nome daquilo que estava fazendo barulho aqui esses dias, né? não deve ter nada pior que este

Como achas que os outros te vêem?
como eu os verei assim que puder

Qual tua ideia de domingo perfeito?
aquele em que sinto todos à volta, felizes. ao meu redor, tudo muito claro e macio. eles tentam sentir meus chutes, chamando-me pelo nome, enquanto mamãe sorri

O que queres estar fazendo e onde queres estar vivendo com 60 anos?
me alimentando ou dormindo, e perto da minha família

O que é o amor?
e o que não é?

Qual tua memória mais antiga?
dindo, pode ter crianças como eu na internet essa hora. creio que não seja adequado eu descrever o que papai e mamãe faziam na minha memória mais antiga

Qual tua idéia de felicidade?
leite, leite, leite

Onde gostarias de viver hoje?
exatamente onde estou

Onde gostarias de passear agora?
que pergunta. que lugares tem lá fora?

O que deixarias de fazer se a Internet acabasse?
o que se fazia quando ela não existia?

Se pudesses eternizar alguém, quem seria?
só posso eternizar um?

O que tu fazes que te dá muito prazer?
mamo. mamo muito. e flatulo também.

O que fazes para espantar a tristeza?
na falta de alternativas para o momento, mamo.

Um filme
tenho curiosidade em conhecer um.

Um livro
idem.

Um som/música
“o que você faria se soubesse? até onde vai a sua fé?” mamãe escutava todo dia até pouco tempo.

Um cheiro
a pele da mamãe

Um lugar
um? este. dois? este e dentro da mamãe

Um site
não vejo a hora de conhecê-los

Uma coleção (que tens ou já tiveste)
não, ainda não

Um doce
isso é bom?

Uma bebida
adivinha

Um prato
pode ser bebida?

O conselho que nunca esqueceu
não precisei de muitos ainda. mas o que tento seguir sempre é “calma, bento, calma”. juro que eu tento.

Um pensamento
antes de eu nascer, minha mãe costumava ficar pensando em como eu seria. esse era um dos meus pensamentos preferidos.

Bento estreando

Bento estreando

Juliano RigattiEspelho meu exclusivo: o Bento
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Dígrafo – parte 2

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Te liga. O texto abaixo é continuação do post Dígrafo.

***

A audição e a visão: o bebê usa mesmo esses sentidos no útero?

Ele ouve mais o pai

Carmem: Com 26 a 28 semanas de gestação, a capacidade do feto ouvir já é aguda e bem desenvolvida (Ziegel e Ceranley, 1985). Um som alto próximo do abdômen também provoca susto, enquanto que um som fraco leva o bebê a voltar-se na sua direção.O feto ouve principalmente ruídos de fundo (rítmicos): entrada e saída de ar nos pulmões da mãe; fluxo sanguíneo nos grandes vasos; passagem de alimentos pelo aparelho digestivo; fluir de sangue pelo cordão umbilical; movimentos intestinais; batimentos cardíacos. Com esses sons rítmicos existentes no útero, o feto vive ao compasso do coração da mãe.

Mas também ouve ruídos exteriores. Estes lhe chegam deformados. Estudos comprovam que o feto é capaz de distinguir uma voz feminina de uma voz masculina. Os sons agudos (voz da mãe) chegam-lhe de forma mais atenuada pela barreira do líquido amniótico que os mais graves (voz do pai).

Música para os seus ouvidos

Carmem: Esse pequeno ser em formação já terá o aparato neurofisiológico da audição devidamente preparado para receber vibrações sonoras desde a 21ª semana de gestação. Alguns neurocientistas afirmam que podemos preparar o futuro bebê para o “ouvido absoluto” estimulando-o com sinfonias, música erudita barroca, renascentista e contemporânea.

Nem todos os estilos musicais são do agrado do feto: ao ouvir as composições de Mozart e Vivaldi, por exemplo, acalma-se e dá pontapés suaves e ritmados; ao ouvir música rock, aumenta os movimentos e acelera o ritmo cardíaco; ao ouvir heavy metal, dá pontapés freneticamente.

Existem cursos especializados para ajudar a futura mamãe a estimular seu bebê até antes mesmo de ele nascer. Nas aulas, o processo é realizado por meio de instrumentos musicais, cantigas criadas pelas próprias mães e escuta de músicas. Conversar com o bebê, cantar para o bebê, são práticas que tanto o futuro papai quanto a futura mamãe podem fazer.

Apaga a luz!

Carmem: O globo ocular do feto começa a formar-se precocemente, mas os bastonetes que configuram a retina não estarão formados até às 16 semanas. Ainda que já possa ver, os olhos estarão fechados, abrirá as  pálpebras pela primeira vez na 25ª semana, e a partir de então abrirá e cerrará os olhos repetidamente.Comprovou-se que uma luz forte junto do ventre materno, produz-se uma aceleração no ritmo cardíaco do feto. No final da gestação, com a distensão da barriga da mãe, há uma maior difusão de luz através do líquido amniótico. Assim sendo, o futuro bebê, distingue entre a luminosidade e o escuro.

Todos nascemos míopes

Carmem: A visão é o sentido  menos desenvolvido, por não ter sido exigida durante a gestação. No recém-nascido, seu alcance é de 20 a 30 centímetros, mais ou menos a distância entre o rosto do bebê e o da mãe na hora da amamentação. A criança não consegue focalizar objetos além dessa medida. As imagens são embaçadas e duplas porque as duas retinas ainda não estão unidas. O bebê é míope. Coloque móbiles coloridos sobre o berço. O olhar do bebê é atraído por objetos em movimento e de cores contrastantes, como azul, amarelo e vermelho. Aos seis meses, a visão estará quase igual à de um adulto.

Vai na manha

Carmem: As vivências maternas, portanto repercutem na forma como este ser virá ao mundo e lidará com o universo que o circunda nos momentos após o nascimento.Então a recomendação na gravidez é NO STRESS! Descanse, veja comédias, ria bastante, ria de si, ria da vida, saia com pessoas agradáveis, ande junto a natureza. Leia livros que elevem a sua auto-estima, mantenha seu humor o mais estável possível.

Durante a gravidez, recomendo às gestantes práticas de meditação, yoga, e muita paz! Massagens corporais ajudam a relaxar a musculatura, liberar as tensões. No abdômen, carícias suaves, feitas com óleo de amêndoas.

Mãe feliz = bebê feliz

Carmem: Paz e felicidade são emoções que qualquer mãe e bebê podem alcançar, para isto aprenda a reconhecer para onde vagam seus pensamentos e entenda que você é livre para escolher o fluxo de sua mente, o conteúdo de seus pensamentos. Está tensa, ansiosa? Apenas reconheça esses sentimentos e saia para olhar as árvores de sua rua, caminhe olhando o belo que muitas vezes está diante de seus olhos: aquela pequena flor que floresceu, o brilho do sol no verde das folhas, o orvalho que ainda está sobre o gramado, o silvo de algum pássaro ao longe.

Deixe seus sentidos abertos para as pequenas maravilhas do universo… conecte-se com o azul do céu, o brilho das estrelas e com este pequeno ser pulsante dentro de você.

Juliano RigattiDígrafo – parte 2
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Dígrafo

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Vou explicar a razão desse título. Vou chegar lá. Antes, boas novas sobre o Bento.

Seguinte: a novidade agora é que o meu sobrinho-guri, o Bento, já se comunica com o mundo plenamente. Como, se ele está dentro da barriga da minha irmã? Movimentando-se, oras. Não que ele não fizesse isso antes. Mas é que antes a sutileza dos seus movimentos não podiam ser percebidos e, além do que, a sua minúscula dignidade ainda era ferida quando o confundiam com, vejam só: um flato. Isso, o esticar e encolher de pernas e braços do meu sobrinho era entendido como um pum. Lamentável.

O fato é que os famosos soquinhos e ponta-pés são a forma primeira de comunicação de um ser como o mundo que o aguarda atrás do líquido amniótico. Não é querer puxar a brasa pro meu assado, mas o meu sobrinho, o Bento, já é um comunicador. Como o tio.

Com unhas, bexiga, pulmões e outros tantos órgãos vigorosos, o que realmente importa é que o Bento já se diverte saudável no ventre macio da minha irmã.

Com cerca de vinte e oito semanas de existência, o Bento – Bento dezessete, para os mais devotos – já passou há tempos, portanto, da metade da sua vida fetal. Ensaiando movimentos respiratórios intra-uterinos, o meu sobrinho-guri já toma fôlego para adentrar este mundo.

Antes de dizer o que realmente me chama a atenção nesta fase da vida do Bento, quero falar do tempo. O que será este senhor, o tempo, para o nosso pequeno Bento? O que deve representar o período de um dia para quem só viveu, desde a fecundação, pouco mais de 220 deles?

Lembro da minha infância. Lembro como eram duradouros os dias, as semanas de prova, os bimestres de aula, os anos letivos, os meses de férias. Antes de entrar na sala de aula, de manhã cedo, perfilávamos no pátio do colégio e eu ficava olhando para as carreiras dos mais velhos. Para os caras da oitava série. O último era sempre um gigante desengonçado, calças pelas canelas e tênis de jogador de basquete. E como eram velhos, meu Deus! Tinha a nítida impressão de que aquela idade não chegaria tão cedo pra mim. E quando chegasse, eu ainda seria apenas um guri, despreparado, inexperiente, imaturo. Verde.

Pois para o Bento, este senhor, o tempo, deve ser ainda mais desconhecido. Mais remoto.

E enquanto o guri se entretém para passar o tempo, sem saber, amadurece algo em seu sensível corpo que será de fundamental importância quando ele chegar, por exemplo, na minha idade: a sua valiosa massa encefálica. O Bento já percebe a luz, os movimentos, os sons, as palavras, sem saber o que dizem, mas sabendo o quanto significam. Percebe as sensações, os medos, as alegrias, as preocupações.

Mas não o faz sozinho. E é aqui que quero chegar. Taqui porque esse texto chama-se dígrafo.

Parênteses.

Sabem dígrafo? Eu também não lembrava até pouco tempo. São os grupo de duas letras para representar um único som. No português são dígrafos: ch, lh, nh, rr, ss, sc, sç, xc. Etcetera e tals.

Portanto. Com minha irmã, mamãe de primeira viagem, o Bento forma o mais importante dígrafo da espécie humana. Não, minha irmã, não é mais a união de érres o dígrafo mais importante da tua vida.

Outro parênteses.

Minha irmã é fonoaudióloga e no trabalho de graduação e na tese de mestrado estudou as variações dos érres em crianças descendentes de imigrantes. Sabem o érre do pessoal do interior? Som de érre com dois érres e com um érre. Essas coisas. Mas claro que os trabalhos da minha irmã vão bem mais a fundo nisso. São premiados, inclusive, viraram artigos. Bem chique.

O que cá estou tentando demonstrar a vocês é que nem o éle-agá, o ésse-cê, o êne-agá ou o ésse-ésse são páreos para o dígrafo ao qual me refiro neste texto.

Tou pra dizer pra vocês que a importância deste dígrafo formado pela união destes dois seres diferentes, mãe e filho em gestação, que pensam e sentem juntos, que compartilham o mesmo ar e a mesma alimentação, beira o primordial, o basilar, o vital.

E vou provar porquê.

Conversei sobre o tal dígrafo com a Carmen Guerreiro Alves, médica formada pela Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas, de Porto Alegre, em 1979, e especializada em Pediatria, Homeopatia  e Psicoterapia Analítica de linha Humanista. Ela me trouxe novidades reveladoras.

A Carmem foi também coordenadora do Ambulatório Geral do Hospital Sanatório Partenon, atualmente vinculada ao SAT (Serviço de Atenção Terapêutica) do mesmo hospital, atendendo gestantes e bebês na prevenção da transmissão vertical do HIV. Coordena grupos de gestantes e mulheres que deram à luz há pouco tempo portadoras de HIV. Desenvolve na Clínica Libertar trabalhos de orientação sobre qualidade de vida, unindo técnicas orientais com medicina tradicional.

Vou postar aqui na Uzina em duas partes. Uma hoje e outra na semana que vem. Assim, em fascículos colecionáveis. Legal, né?

Hoje: O vínculo afetivo bebê-mamãe: por que essa relação é fundamental?

Semana que vem: A audição e a visão: o bebê usa mesmo esses sentidos no útero?

***

O vínculo afetivo bebê-mamãe: por que essa relação é fundamental?

A raiz da personalidade

Carmem: o vínculo mãe e bebê  tem sido considerado como a raiz da personalidade. Inúmeros estudos efetuados por John Bowlby e Mary Ainsworth nos anos 60 e 70, confirmam que os níveis de vínculo irão de alguma forma influenciar a integração social do ser, dependendo do apego desenvolvido na relação mãe-bebê.

Segundo as teorias do Psicanalista Bowlby há dois tipos de apego: o seguro e o inseguro, o qual é dividido em quatro subgrupos: ambivalente, esquivo, resistente e desorganizado.

Problema de caráter

Carmem: Bowlby refere que é essencial para a saúde mental que o bebê possa experimentar uma relação contínua, cálida e íntima com sua mãe ou, posteriormente, em casos de adoção, com a substituta materna permanente, na qual ambos possam encontrar satisfação. Muitos tipos de problemas psíquicos e de caráter podem ser atribuídos tanto à falta de cuidados maternos quanto à descontinuidade nessa relação.

Um adulto capaz de amar

Carmem: A teoria do vínculo afetivo entende o crescimento de uma criança como resultado da relação que ela mantém com os pais, mas em especial com sua mãe. O apego é uma necessidade  primária e vital. Um bebê que se sente protegido, amparado, tranquilo terá muito mais chance de se tornar um adulto seguro de si, capaz de amar e sentir-se amado. Pesquisas mostram que crianças seguras em relação aos pais choram menos e são mais persistentes na exploração do ambiente. Já as inseguras são mais submissas ou agressivas.

As primeiras referências do mundo

Carmem: Portanto, é de suma importância o estado emocional da mãe tanto durante a gestação, como após ela. Pois é a partir da mãe que os primeiros referenciais do bebê virão a ser construídos por meio do vínculo e na manutenção posterior deste. A proximidade real com a mãe, com o corpo dela propicia intimidade e consequentemente segurança no período imediato ao nascimento. Na gestação, tristezas, choros, raivas e sentimentos de natureza negativa influenciarão diretamente o bebê, pois a produção dos hormônios do medo e da raiva estarão presentes na corrente sanguínea, seguindo através da placenta diretamente para o bebê.

Um útero rígido, escuro e frio

Carmem: Quando a gestante entra em stress, as glândulas adrenais passam a produzir e liberar os hormônios do estresse (adrenalina e cortisol), que aceleram o batimento cardíaco tanto da mãe quanto do feto, dilatam as pupilas, aumentam a sudorese e os níveis de açúcar no sangue, reduzem a digestão, contraem o baço (que expulsa mais hemácias para a circulação sangüínea, o que amplia a oxigenação dos tecidos) e causa imunodepressão (redução das defesas do organismo). A função dessa resposta fisiológica vinculada tanto ao medo quanto a raiva serve para preparar o organismo para a ação, que pode ser de “luta” ou “fuga”, mas para o feto isso tem repercussão direta, a medida que esse útero que o abriga torna-se rígido, escuro e muito frio, representando então uma ameaça real para o pequeno ser que ali vive.

Juliano RigattiDígrafo
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