Sotaque e esforço: ilustres passageiros há 18 anos

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Pois então. Esse é o quinto texto da série de textos meus do tempo de faculdade. Tempo esse de muitas observações e de muitas novas experiências lúdicas que só a academia pode proporcionar ao ser humano. O texto abaixo foi escrito sob inspiração de uma dessas novas experiências, neste caso o Jornalismo Literário. A proposta da professora era que passássemos um dia inteiro com alguém sobre o qual tinhamos resolvido escrever. Meu vida profissional estava intensa em outubro de 2003 e não pude passar um dia inteiro com o tio Roque, kombista em Canoas há muito, muito tempo. Mas o que está abaixo fala com honestidade sobre a vida deste homem. Fiquem à vontade.

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Sotaque e esforço: ilustres passageiros há 18 anos

Canoas, 2003. Região metropolitana de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Seu Roque espera o relógio marcar 5h40. Logo está de pé para tomar seu chimarrão e zelar pela horta e pelas muitas espécies de árvores frutíferas que cultiva no fundo do pátio onde mora, na rua Expedicionários, a poucos metros da escola Espírito Santo. Atrasados pelo horário de verão, só uma hora depois é que os primeiros raios de sol começam a pintar no chão de basalto as sombras das árvores cultivadas ao redor da grama, no meio das flores. Pontualmente, seu Roque aciona o portão eletrônico, enquanto conduz sua Topic prefixo 35. Da garagem até a ponta do pátio, um longo caminho de pinheiros-ouro o acompanha. O portão abre passagem à esquerda e acena para mais uma viagem. Este mês, tio Roque, como é chamado por uma de suas alunas, completa 57 anos de vida e 18 de transporte escolar. Com o forte sotaque da língua alemã, que falou até a juventude, orgulha-se. “Fez 18 anos em agosto que eu trabalho no transporte escolar e eu não faltei um dia. Nem na morte da minha mãe. Minha mãe morreu na quinta de noite e fizemos o enterro só no sábado de manhã. Porque eu não posso falhar e deixar as crianças. E, em 18 anos, nunca nenhuma delas se machucou nas minhas Kombis.” Em agosto de 1985, com uma Kombi ano 1976, prefixo 06, seu Roque fez seu primeiro transporte escolar.

São Paulo, 1822. A proclamação da independência, em 7 de setembro, tinha gerado o desagrado não só junto às autoridades em Portugal como dentro do Brasil. No entendimento da Coroa Portuguesa, nosso país deveria voltar à condição de simples colônia. Com a preparação das forças militares portuguesas para invadir o Brasil, nosso exército teve de ser reforçado. Não tínhamos homens suficientemente preparados. Para ocupar as cerca de 4.000 vagas abertas nos Batalhões de Estrangeiros, apenas 200 soldados rasos haviam se apresentado. Era necessário, portanto, trazê-los do exterior. Johann Anton von Schaeffer foi o homem recomendado pela Imperatriz D. Leopoldina para transportar os primeiros soldados e colonos alemães para o Brasil.

Com o major Schaeffer – um senhor de 42 anos – no comando da operação iniciada em 1823, no porto de Hamburgo, 27 expedições chegaram ao Brasil entre 1824 e 1829. O embarque dos alemães nos veleiros de três mastros, que o próprio major havia providenciado, só acontecia quando a embarcação estivesse devidamente adequada para o transporte de pessoas. Para a época, os navios eram confortáveis, equipados com tudo que é necessário para cuidar da saúde e da higiene dos passageiros. Mortes durante as viagens eram inevitáveis, mas nunca foram causadas por má alimentação ou falta de condições de higiene. Nesses primeiros anos, o major Johann Anton von Schaeffer esteve sempre à frente do processo migratório. O primeiro veleiro, chamado Argus, saiu do porto de Hamburgo em 27 de julho de 1823 e chegou ao Rio de Janeiro, trazendo 284 imigrantes, em 7 de janeiro de 1824.

Neto de um alemão, Cacildo Roque Weschenfelder, o seu Roque transporta crianças para escolas e creches de Canoas faz 18 anos. Há pouco menos de dois séculos, major Schaeffer era o responsável pelo transporte dos primeiros alemães ao nosso país. Dois homens unidos por providência da História e pela semelhança de seus ofícios.

6h40 em ponto. Enquanto sobe a rua Expedicionários, o barulho do motor parece despertar o sol e as centenas de sabiás que dormem nas copas das árvores crescidas na calçada. “Olha aquelas duas senhoras ali caminhando. Sempre encontro elas. E sempre no mesmo horário. Na volta, encontro elas de novo”, conta seu Roque, apontando para as duas senhoras, enquanto deixa à direita a escola Espírito Santo.

Até as 7h30, ele precisa embarcar, ao todo, nove crianças. A menor fica na creche municipal vovó Babali, algumas delas na escola Espírito Santo, e o restante no colégio Cristo Redentor. Nos turnos da tarde e da noite, seu Roque faz transporte ainda para as escolas municipais Duque de Caxias e Farroupilha, e para escola estadual Protásio Diogo de Jesus. O primeiro aluno da manhã é Israel, 12 anos. Estuda na sexta série do Ensino Fundamental do Cristo Redentor. Mora no bairro Estância Velha. Para seu Roque, mais um dia começou.

Em Canoas, 45 veículos – Kombi ou similares – estão autorizados a fazer transporte escolar, segundo informações da Secretaria de Transportes do município. Ao todo, cerca de 800 crianças utilizam o serviço. O valor cobrado pelos kombistas é sempre resultado do acordo entre os pais do aluno – ou ele mesmo – e o prestador. Desde 1985, já passaram pelas Kombis do tio Roque mais de 2.000 alunos. Hoje, ele transporta 40, divididos entre o turno da manhã, da tarde e da noite. Diante da grande responsabilidade própria do ofício, seu Roque não esconde o desgaste: “Puxar aluno é um sofrimento muito grande. Às vezes, penso em parar. É muita preocupação. Eu durmo cinco horas por noite. E, chegando aos cinqüenta, tu vais sentindo o cansaço, e começa a sentir o peso da idade, como se diz. Ainda semana passada eu estava que não agüentava mais meu nervo ciático”.

Segue a viagem. seu Roque já está no bairro Estância Velha, a poucas quadras da casa de Israel. Ele diminui a velocidade e olha para a calçada. “Está vendo aquele ipê-amarelo ali?”, pergunta, esticando o braço direito. “Fui eu que plantei, em 1971, quando morava naquela casa ali. Lembro que daqui pra frente era tudo açude. Morei cinco anos naquela casa.”

Seu Roque nasceu no dia 19 de novembro de 1946, na Comunidade de Piedade, distante 70 km de Porto Alegre. Filho do casal Francisco José Ebelhalb Weschenfelder e Rosalina Isabela Atz Weschenfelder, ouvia sempre de seu pai que o avô e um tio-avô vieram da Alemanha para o Brasil. A Comunidade de Piedade, hoje com 1.400 moradores, quase todos descendentes de alemães, pertence aos municípios de Bom Princípio e São Vendelino, ambos a cerca de 80 km da capital do Rio Grande do Sul.

Passou a infância inteira em Piedade. Em 1º de maio de 1967, com 20 anos, convidado pela irmã, seu Roque mudou-se para Canoas para tentar uma vida melhor. O primeiro emprego na cidade durou 10 meses. Trabalhou como ajudante do ônibus da escola Maria Auxiliadora, no centro de Canoas. Foi ainda em 1967 que seu Roque conheceu Neuza Mariotto, com quem se casou em 2 de outubro de 1971. Dos sete filhos que tiveram, quatro são falecidos. Os outros são Ana Márcia, 30 anos, Jorge Alexandre, 27, e Marcos Alexandre, 22. Seguindo o ofício do pai, Marcos e Ana Márcia também trabalham com transporte escolar. “A Márcia ficava na minha Kombi desde seis, sete aninhos. Ela tem vocação pra criança. Ela, com aquela idade, já ficava comigo, ela abria e fechava a porta, cuidava dos alunos e eu tinha a maior confiança nela.”

Antes de entrar para o transporte escolar, seu Roque trabalhou ainda como pedreiro. Também foi encarregado de serviços gerais durante 14 anos na escola Espírito Santo, onde teve sua primeira experiência conduzindo uma Kombi.

Seu Roque acena para a mãe de Israel. Arranca a Topic. Os próximos a embarcar serão João, 11 anos, Alda e Franciele, ambas com 14. João estuda na quinta série do colégio Cristo Redentor. As gurias, na oitava série da escola Espírito Santo. “Faz tempo que tu andas com o seu Roque, Alda?”, pergunto. “Desde a quarta série”, lembra a guria. “E você, Franciele?” A resposta demora um pouco. Vem baixinha do fundo da Topic: “Sexta, eu acho”.

Depois de Israel, João, Alda e Franciele, seu Roque pára na rua José Bonifácio, bairro Nossa Senhora das Graças. Desce da Topic para pegar o seu passageiro mais novo da manhã. Pedro, 6 anos, recebe um beijo da mãe para, em seguida, segurar a mão de seu Roque. Logo está sentado. De casa até a creche vovó Babali nada se ouve dele. “Já fazia dois anos que eu levava ele e ainda não tinha ouvido a voz dele. Mas dizem que na creche é um terror”, conta seu Roque, enquanto senta, fecha a porta da Topic e afivela o cinto de segurança.

Logo após levar Pedro à creche, seu Roque pega Mateus, 12 anos, aluno da sexta série da escola Espírito Santo. Às 7h15, pára em frente ao colégio Cristo Redentor para o desembarque dos primeiros três. Dali, a viagem continua até o bairro Cidade Nova, onde embarcam os irmãos Caroline, 10 anos, quinta série, e Jorge, 7, primeira série. Ambos estudantes da escola Espírito Santo. Na rua Santa Maria, seu Roque pára em frente à casa do último aluno e, como de costume, buzina e aguarda. Sem resposta, sai da Topic e, em segundos, retorna. “O Lucas não vai.” “Ele está doente?”, pergunta uma das crianças. “Não sei… acho que sim, a mãe disse que ele não vai”, responde seu Roque.

Às 7h25, cinco minutos antes do início da aula, a Topic prefixo 35 chega à escola Espírito Santo. Os mais velhos logo descem, despedem-se e somem. Os mais novos são conduzidos por seu Roque pela faixa de segurança. Quando chegam na calçada, logo saem correndo e desaparecem no meio das outras crianças.

Fechada a porta da Topic, às 7h30 sobrevém o conhecido sentimento do dever cumprido. Em alguns instantes, o sinal sonoro da escola Espírito Santo vai indicar o início de mais um dia de aula. Mesmo sem as crianças na Topic, seu Roque continua a andar devagar, com prudência. Antes de dobrar à esquerda, no final da quadra, aguarda a passagem de um carro e reencontra as duas senhoras que também apontam na esquina, retornando de sua caminhada matinal.

Como de costume, seu Roque pára na padaria para comprar os pães pro café da família. Às 7h40, chega em casa. O portão eletrônico cumpre o ritual de recepção. Em seguida, a Topic prefixo 35 está novamente estacionada na garagem, ao lado da Kombi, ano 1997, prefixo 39.

Quando o relógio da cozinha marcar 11h, uma delas estará só novamente. Para seu Roque, o dia terá começado mais uma vez.

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O Seu João e o Jornalismo

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Minha formatura em jornalismo veio há poucos meses depois de sete anos de ida e vindas da Unisinos. Depois de um monte de entrevistas e trabalhos experimentais. Uma delas, pelo tanto que me fez pensar sobre o que seria minha profissão, virou crônica em fevereiro de 2004. Até personagens ganhou. Todo mês, nos primeiros dias, a Uzina terá um texto meu marcado pelo tempo de faculdade.

Embora estejamos convencidos que nunca o mundo foi tão dinâmico, com mudanças drásticas em todos os campos — a novela das oito com o último capítulo em um sábado, quem diria? –, contraditoriamente, há muito no jornalismo que continua exatamente como era. No mínimo, como há quatro anos. Boa leitura.

O Seu João e o Jornalismo

Marcele, a mais nova, casou na semana passada. E casou bem. Um cara legal, bacana e bem de vida. Foram morar num condomínio desses novos lá na zona norte. O Juarez, o do meio, engajou no exército e sonha com uma vida estabilizada. Acho que, fora a política, ser militar é a única coisa garantida nesse país, justifica Juarez sempre que lhe perguntam do quartel. A Martinha, a mais velha, trabalha na prefeitura há anos. Já tentou casar uma centena de vezes e nunca deu certo. O pequeno Betinho é a lembrança de um desses relacionamentos. É um guri sapeca. Faz cinco anos domingo que vem. Aconteceu. Foi no namoro com o Evandro. Conheceu-o quando estudava Legislação pra prestar prova pro concurso da prefeitura. Ele ainda mora ali pertinho da quitanda e às vezes vem buscar o Betinho pra algum jogo do Zequinha.

A quitanda é do seu João. O pai da Marta, do Juarez e da Marcele. Não consegue ficar parado. Logo que se aposentou como Encarregado de Manutenção, resolveu alugar uma pecinha na esquina perto de casa e montar uma quitanda. Dessas que vendem frutas e verduras fresquinhas e de vez em quando até tem preços mais baixos que o supermercado.

Seu João aprendeu a ser vendedor e a entender de frutas e verduras quando morava com os pais em Farroupilha há uns 53 anos. 54, para ser exato. Ele costuma contar que o seu pai foi o primeiro agricultor de lá a conseguir vender alguma coisa aqui pra capital. Diz que costumava vir com o pai vender as coisas na Ceasa. Conhecia todos e conversava com todos. O seu Osmar das rosas, o seu Jorge das beterrabas, dos aipins e das batatas. Lembra do velho Rui que já tinha uns 80 e lá vai paulada e continuava firme vendendo suas maçãzinhas que trazia de Vacaria. A dona Maria e o seu Alípio vinham de Bento vender uva na capital. Esse era o mais gente boa. Quando seu João ia embora sentia a barriga graaande… cheia de uva… tudo bondade do seu Alípio. Uva da boa.

Hoje, seu João vive de vender suas próprias frutas. E ensina ao Betinho a arte de ser um bom vendedor. Assim como era o teu bisavô, Betinho. Seu João acorda cedo. Três vezes por semana, compra as frutas e verduras na Ceasa ainda antes de muita gente acordar. Nos outros dias, sete horas já está abrindo a quitanda. Escolhe as frutas melhores e joga pra cima das mais passadinhas. Até o movimento aumentar, seu João aproveita pra dar uma lida no jornal. Diário Gaúcho. Ah, é melhor, diz ele. Uma que é mais barato e outra que a gente vê coisa da vida da gente, né? Outro dia eu li sobre o meu vizinho que foi preso. Ele era traficante e eu nem sabia, conta, enquanto exibe, sem se dar conta, a prótese dentária que ganhou da filha ano passado.

– A batata, tá quanto?
– A Branca meia cinco e a Rosa cinqûenta.
– E a banana?
– Caturra um e dez e a catarina um e meio.
– Não tá ruim não a banana… a batata levo amanhã. Vou esperar esse gringo baixar o preço.
– Não chora seu Valdemar, é o preço. Vai ver quanto tá lá no mercadão vai…

Passa o dia na quitanda. De meio dia, vai pra casa. Dona Lurde, esposa de seu João há 25 anos, nunca gostou muito de cozinhar mas nunca ninguém percebeu nada. À tarde, volta pra quitanda e só chega em casa quando o alaranjado do pôr-do-sol começa a aparecer. Sem a quitanda, a vida do seu João seria menos… vida, digamos. Ali ele vê os anos passar enquanto se diverte, trova com os vizinhos, toma chimarrão e lê o Diário. Soube esses dias pelo seu Valdemar, que assina o Correio do Povo, que o Lula anda viajando tanto quanto o FHC. Achou uma pouca de uma vergonha. Passa governo e entra governo e continua tudo a mesma coisa, resmungou. Má não muda nada nunca, sacramento!

“O que é importante pro seu João que está ali na quitanda todos os dias, levando sua vida, vendendo suas bananas?”

A frase é da ex-assessora de comunicação da CUT-RS, Cátia Marco. Nos encontramos ano passado em sua casa. Eu precisava fazer um trabalho sobre Teorias do Jornalismo e ela me atendeu com bastante gentileza. A frase surgiu ali. Ela mencionou o seu João. Assim, sem nada muito bem pensado. Acabou criando o meu personagem. A Cátia é uma jornalista que aprendeu a pensar o Jornalismo da forma avessa. A notícia sindical é, por natureza, assim: Jornalismo pra comunidade. Ela critica o nosso tradicional jornalismo das elites. Onde o mais importante são os índices da Bovespa e a cotação do Euro. E as bananas do Seu João?

“Cátia, o que tu pensas das teorias que dizem que a notícia está subordinada aos capitais políticos, econômicos e sociais?”, perguntei. “Acho que está subordinada, sim”, disse ela. “E isso acaba tornando a notícia distante da realidade de pessoas simples. O que é importante pro seu João que está ali na quitanda todos os dias, levando sua vida, vendendo suas bananas? A Guerra do Iraque pra ele é muito distante. Como tu aproximas as pessoas da notícia?”

A globalização é um dos maiores desafios do Jornalismo nesse século. É exatamente ela que desencadeou um processo que aproxima as pessoas da relevância da notícia. É desse ponto de vista que enxergo as coisas. O desafio está em servir as massas de uma informação que possa importar a todos. Este é um século sem distância, sem espaço de tempo definido e que não tolera desinformação. São toneladas delas que são despejadas sobre nós a cada dia e somos obrigados a incluir em nossa agenda a tarefa de saber tudo. Ou quase tudo.

Na época, até fiquei bastante preocupado com o tipo de Jornalismo que estava me preparando para praticar. Será mesmo um jornalismo das elites? Pra poucos? Confirmava isso vendo o grande público que o Diário Gaúcho conquistava a cada dia. Havia, sim, um público distinto. Um que lia Correio do Povo e ficava satisfeito em saber que a guerra do Iraque acabou e outro que ficou também satisfeito porque o prefeito prometeu fechar o valão que passa do lado da casa de sua sogra. Esse lê o Diário Gaúcho, vamos supor.

E há, ainda, um público bastante distinto. De um deles é que ainda sobrevive (e em abundância) os jornais de apelo popular e os jornais das comunidades.

É histórica a necessidade de um povo de querer ver falarem de si, das suas coisas, dos seus jeitos. Nas primeiras comunidades alemãs que ajudaram a colonizar o Rio Grande do Sul, já se via o velho e bom jornalzinho da comunidade.

O que comecei a pensar de novo nesse jogo é que, com a globalização, a notícia que interessa pro seu João e suas bananas já interessou ao leitor do Correio do Povo há algum tempo atrás. E tende a interessar aos dois no mesmo dia até. Cada vez mais e com mais velocidade, um acontecimento macro gera repercussões práticas no micro. O preço do óleo que o seu João compra pra vender na quitanda é resultado do preço da soja que o cara que faz o óleo pagou. Esse preço da soja é fruto de alta ou baixa das balanças comerciais que, sabe lá, porque cargas d’água resolveram oscilar.

Não que fenômenos desse tipo sejam novidades. Claro que não. O fenômeno que destaco é que parece que a cada dia a velocidade com que esses dois fatos – o micro e o macro – vão influenciar um ao outro é muito grande.

Bastou aparecer nos jornais a gravidade da crise da italiana Parmalat que já se ouviu rumores que o preço do leite iria baixar. E baixou mesmo. Foi uma medida adotada pela Parmalat Brasil para se ver livre dos estoques. A queda dos preços acirra a concorrência e só quem ganha são os consumidores. Como o seu João.

Foi a galinha oriental dar o primeiro espirro que a esposa do seu João, a dona Lurde, foi logo pensando que o quilo do frango ia baixar e ela ia aproveitar pra congelar bastante. Ouviu da vizinha que tinha alguma coisa a ver com as exportações brasileiras. Parece que o frango brasileiro é bem mais limpinho e não tem problema de pegar gripe, é uma coisa assim, explicava a vizinha.

– Bom dia, seu João. Quanto tá a batata gringo?
– A Branca setenta e a Rosa cinco cinco.
– Má tá mais caro que ontem? Má que gringo sem-vergonha, tchê!
– Te acostuma, seu Valdemar, te acostuma. A coisa tá feia… é o Euro subindo, a inflação alta, Nasdaq em baixa e as exportações do jeito que o diabo gosta…
– Hein?!

Juliano RigattiO Seu João e o Jornalismo
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Nossas memórias

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Todos os que já estão formados, seja lá em que curso for, sabem que a condição essa de formado implica termos, além do registro profissional, uma série de lembranças imensamente agradáveis em nossa memória. Cada pedaço do passado que a mente – esse ser controverso – escolheu recortar pra guardar traz consigo uma sensação de perpetuidade. “Conhecimento é uma coisa que ninguém te tira”. Tu já deves ter ouvido essa frase por aí.


Dia desses fui pegar um filme na locadora.


– Tem ficha?
– Hem?
– Ficha. Cadastro. Tem?
– Ah, não.
– Nome.
– Juliano Filipe Rigatti. Erre-i, jê-a, dois tês, de tomate, i.
– Rigatti…
– Isso.
– Idade, Filipe.
– 25.
– Profissão.


A moça repetiu a pergunta. Mais uma vez. A voz já ficava mais fraca. Eu mais longe dali. A voz sumiu. Fiquei pensando.

A memória da gente funciona tipo uma máquina fotográfica. Por razões até hoje desconhecidas, resolvemos apertar o botãozinho mágico em frente de uma cena que nos chama a atenção. A cena, por sua vez, é copiada do tempo e guardada num filme, num rolo de filme, ou num cartão de memória. Ou na memória da gente.


Quando penso em todo o meu tempo de faculdade – pouco mais de sete anos e meio – não faço filme, mas um álbum de fotografias. Com muitas fotografias. E posso lembrar de umas tantas.


Lá vão cinco delas:


Sete anos e meio atrás, eu no salão paroquial da igreja aqui perto de casa. Exultávamos de alegria no palco, festejando a chegada de mais um dos inesquecíveis retiros do CLJ, grupo de jovens da Igreja Católica. Minha irmã e minha mãe vieram ao meu encontro contar a novidade: eu tinha passado no vestibular pra jornalismo. Não que aquilo fosse alguma grande façanha, mas era uma boa notícia, no mínimo. Aquele dia, eu iniciava mais um ciclo.


A segunda lembrança é a turma toda do primeiro semestre do curso tentando posar para uma foto na lata. “Foto na lata” é um processo alternativo de fotografia que utiliza apenas uma lata – aquelas de achocolatado, pode ser –, um papel de foto, para revestir a lata internamente, e um furo de uma centimetragem específica em algum ponto do corpo da lata. E sol. Basicamente isso: lata, papel, furo e sol. Lembro que a lata estava em cima de alguma coisa quando alguém foi lá e destapou o buraquinho: clique. Estava pronta a foto, mesmo que com suas características bem peculiares, já que a cena fica arredondada (sabe quando se olha por uma lupa?) e preto e branca. Fica espelhada também – a cicatriz do rosto agora do lado esquerdo, a unha comprida no dedo mínimo da outra mão. No mais, é uma foto. Ela pode não ter a melhor qualidade estética, mas, juro, quando ponho os olhos nela hoje, ela cumpre exatamente o mesmo propósito que as demais.


Outra fotografia da minha memória. Primeiro semestre do curso. Estávamos em uma sala repleta de máquinas de grande porte e, em frente ao amontoado de curiosos alunos, um senhor apontava para uma placa que explicava o que fazia o tal equipamento. O professor da disciplina de Introdução ao Jornalismo tinha nos levado para conhecer a redação e produção do Jornal NH, em Novo Hamburgo. O maquinário aquele era um orgulho para o jornal. Naquela época, eles eram os pioneiros em um tipo de processo de impressão. À frente inclusive do maior grupo de comunicação do Estado. Engraçado destino. Entrei nessa sala há muito tempo, quando ainda nem fazia idéia de o que era Jornalismo. Voltei exatamente a esse lugar meses atrás. Quase formado, atuando na área e acompanhando um executivo importante da minha empresa. Pela explicação desses dias, descobri que o método de impressão do jornal já não é mais a vanguarda do mercado. O tempo passou.


A Kombi do seu Roque. Lembro de estar de carona, rodeado de crianças e atento ao que se passava nos bancos estofados do lado e da frente. O sotaque carregado do condutor, a gritaria da pirralhada e as brincadeiras inocentes eram os outros passageiros. Tinha que captar tudo para uma reportagem literária – modalidade do jornalismo que combina fatos com a linguagem do romance da literatura – que estava escrevendo sobre a vida do seu Roque, que trabalha como kombista em Canoas há trocentos anos. Ele mora até hoje numa casa com um gramado enorme aqui perto de casa. Tem nessa casa um cachorro, daqueles bem grandes, que acompanhava minha descida da lomba nas voltas da aula, isso no ensino fundamental. Eu descia e ele ficava me acompanhando, olhando e rosnando. Quando o terreno dele acabava e eu continuava, ele latia em desespero e pulava no muro dando quase uma cambalhota. Não ganhei o concurso com a tal reportagem literária. Azar. Ganhei lembranças boas pra guardar comigo.


Bom, a última memória que queria citar é beem mais recente. E se explica sozinha pela foto ali de cima.


– Moço? – despertou-me a atendente da locadora.
– Ah, oi?
– Profissão, tem profissão?
– Sim, sim. Jornalista.

 

Juliano RigattiNossas memórias
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Vida sem vírgulas

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De noite

quando os olhos umidos piscam duas

tres vezes

E os labios se esticam

num largo bocejo

Sinto nos ombros o peso da semana que termina soh amanha

Nas costas, o sentimento de cada decisao

E do boa-noite corrido que dei pra ela

Não adianta, nunca me satisfaço com o telefone

Quando as linhas se quebram e nos dao o tempo necessario de correr o olho por entre o branco da pagina em busca da proxima letra eh porque a vida que escrevo diminuiu seu ritmo e deu chance de respirar quando na verdade nao eh costume da nossa vida parar assim e dar tregua todos ja sabem disso porque sabem ou porque leram em algum lugar que a vida eh uma grande batalha cheia de disputas primeiro pelo tempo que dizem ser precioso depois pelo dinheiro depois pela vaidade que nos eh inutil todas as vezes que o dia nos massacra e que novamente estamos entregues na cama sem ter o que pensar a nao ser nos deixar vencer pelo convite do sono

Na noite passada lembro ter pedido a Deus para ser um cara melhor no dia que iria começar amanha e que o meu dia fosse iluminado e que pudesse fazer as coisas da forma correta mas na verdade nem sei como lembrei disso tudo porque hoje o dia começou ainda mais atucanado que ontem e a unica coisa que penso novamente eh em quando isso vai diminuir nao tem chance para o vacilo porque como combinamos antes tudo eh uma grande batalha e a desatençao faz perder a guerra mas guerra de que heim? o que ganho correndo desse jeito ih esse é o meu onibus porra trem lotado de novo e nesse calor deve estar uma estufa enfrenta meu rapaz eh a vida tu tens que sofrer pra te sair bem na vida e ainda tira esse revista da pasta e vai ler aliás o que é que tu tens lido ultimamente qual teu livro de cabeceira chega essa voz da consciência me enlouquece e essa aula me faz refletir ainda mais nas coisas que nao faço nas coisas que nao sei e nas coisas que nunca vou precisar saber esse professor sabe pra caramba mas não sabe passar e a desculpa de eu nao ter tempo nao vale porque senao todos a dariam e seriamos todos iguais de novo eu devia estar com sono essa hora nesse trem vazio mas a aula foi tao boa que sao onze horas e eu estou bem ligado mas soh ateh comer alguma coisa sempre fico assim depois de comer e antes de por o celular despertar olhar para a cama e nao lembrar mais de nada

Puta merda sete e meia hoje vou pegar o segundo onibus e chego meio atrasado vinte pras oito tchau mae tchau pai esse chuvinha de molhar bobo pra quem usa oculos parece uma enchurrada pingoes desse tamanho e o guarda-chuva tá aqui ou ficou estah aqui e esse ônibus que nao vem assim atrasa mais ainda acho que aquele cara vai descer daqui a pouco dai sento no lugar dele droga bem hoje que eu tinha esse poligrafo pra ler tenho que ir de peh e essa pasta pesada vou largar no chao mesmo depois limpo embaixo melhor do que ficar rasgando a mão aos pouquinhos e tudo que quer se consegue e tudo depende de escolhas que fazemos sobre as coisas vou optar em aceitar esse troço como um desafio pra mim vai ser mais facil do que encarar como um problema nao adiante eh assim e sempre vai ser assim mas se fizessemos alguma coisa vamos reclamar na coordenaçao a aula que pagamos tao caro nao pode ser tao ruim carona? claro pode ser se fica no teu caminho eu aceito quer saber da minha vida? tah beleza um pouco corrida mas não dah nada tenho mesmo eh que agradecer que bom que deu pra deitar mais cedo tenho que acordar mais cedo tenho umas coisas pra por em ordem lah não deu tempo ontem

Nao deu tempo ontem

Não deu tempo de terminar aquele troço

Nao deu tempo de ligar pra ela

Nao deu tempo de saber dele

E de dizer aquilo pro pai

Essa paisagem tão desgastada da vida merecia no minimo um pouco mais de respeito pelo menos alguns pontos a mais nessa rotina sem virgulas e sem acentos onde tudo parece muito igual e onde o tempo eh obsessao de todos e pertence a ninguem ou nos pertencemos a ele? sei la não vejo a hora de sair desse paragrafo e descansar porque a semana soh termina amanha e quando o espaço em branco voltar a aparecer

O dia vai estar chegando ao fim

E eu nao tive tempo de rever o que disse

Nem de procurar onde por as virgulas não sei por onde começo

Se pelo inicio, pelo meio ou pelo fim.

(Este texto foi escrito por mim, em 1/6/2004)

Juliano RigattiVida sem vírgulas
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