Tudo pelo sorriso da Rebeca

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A Rebeca, minha afilhada de nove meses, tem um tapete de E.V.A. colorido, em formato de quebra-cabeça, com letras destacáveis de cor oposta no miolo de cada peça. O tapete colorido dá limites à Rebeca. Os primeiros e essenciais limites. Nele, se acomodam a Rebeca, sua tartaruga com pescoço vibratório, sua borboleta multicolorida e todos os demais brinquedos. Enquanto brinca em seu universo de imaginação, a Rebeca devolve um sorriso a todos que a interrompem. Ele é assim, o sorriso: coberto por uma franja e um nariz, cada um à sua perfeição, ele tem poucos dentes, e o fato de ser espremido pelas bochechas faz com que se espalhe e seu rosto todo também sorria. Ou seja, gente, é contagiante o sorriso da Rebeca.

Uma de suas atividades preferidas no tapete-quebra-cabeça é um movimento acrobático que põe dois grupos da numerosa família em oposição — porque famílias grandes sempre alimentam suas polêmicas: uns apostam que é o início do engatinhar, enquanto outros, mais apressados, dizem que ela já está tentando se levantar. É que ela apoia as palmas das mãos no chão, faz um esforço tremendo até que seus pezinhos também estejam com as bases no solo, isso sem dobrar os joelhos, de forma que quase todo o seu peso seja acumulado nos membros superiores. “Um perigo”, grita a bisavó. “Deixa, bisa, ela tem que se experimentar”, ameniza a mãe, minha comadre Mel.

Um dia, a bisa teve razão e os bracinhos da Rebeca não suportaram seu peso. Ela foi-se com o rostinho ao chão. “Viu! Ai, meu Deus!”, exclamou a matriarca, tentando chamar pra si os méritos de seu conservadorismo.

Uma fração de segundos pra refletir sobre o que fazer diante da queda da Rebeca.

Uma hipótese seria correr em direção a ela, afagá-la, procurando ferimentos e soltando murmúrios do tipo: “E agora? Será que cortou o nariz? Ou o lábio?”, diria a mãe da Mel e vó da Rebeca. “Não faz mais isso, guria!”, alertaria o pai. “É perigoso até criar um coágulo na cabeça”, avisaria a bisavó.

Pra sorte da Rebeca, não fora essa a decisão.

As mães francesas, quando seus bebês choram à noite, levantam e param ao lado do berço, sem tocar o filho e sem que ele perceba. Em dois minutos, o bebê se acalma e volta a dormir. É uma reação típica de um ciclo do sono, chorar. Dizem elas que aos dois meses os francezinhos já dormem uma noite inteira.

O que estaria fazendo a mãe francesa se pegasse o bebê no colo e o acalmasse? Estaria ensinando-o como reagir cada vez que quisesse colo ou a mãe por perto.

E como reagiram com a queda da Rebeca, sua mãe e familiares? Sabiamente, não permitiram que ela se assustasse e desviram sua atenção para uma nova brincadeira. Tudo para não deixar o seu sorriso escapar. Tudo pelo sorriso da Rebeca.

A queda da Rebeca traz a nós, adultos, um belo aprendizado: o de que os problemas, desde os mais simples, podem ser ignorados.

Pense em um desconforto estomacal. Mentalize seus sintomas, suas causas e suas mais trágicas consequências. Segundo Nicholas Carr, autor de A Geração Superficial, um dos estudos sobre como padrões de pesamento afetam a anatomia de nosso cérebro, realizada por Álvaro Pacual-Leone, neurologista de Harvard, comprovou que parar em frente a um piano e imaginar os toques e os sons de cada tecla produz as mesmas mudanças cerebrais que tocar de fato o instrumento musical. “Nossos pensamentos podem exercer uma influência física sobre nosso cérebro (…). Tornamo-nos, neurologicamente, o que pensamos”, conclui Carr. Quer dizer que a célebre advertência “Não mime os seus problemas”, do Pe. Eduardo Delazeri, tem sua razão. Ao concentrar sua atenção no estômago, procurando fazer mais que o remédio, o adulto age como se permitisse à Rebeca assustar-se com o arranhão na testa ao cair.

O sorriso da Rebeca é bonito demais para que permitissem que se fosse, sendo substituído por berros e lágrimas. Cada momento da vida de um adulto é único o bastante para que ele permita substituí-lo por suposições de possibilidades negativas.

O que aprendi com a Rebeca é que mais do que desperdício, o nosso pessimismo é um grande risco: vai que o cérebro resolve acreditar na gente e torna real a ideia de uma infecção intestinal. Ou vai que isso custe o nosso sorriso.

Juliano RigattiTudo pelo sorriso da Rebeca
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