Para ser grande

No comments
    Para ser grande, sê inteiro: nada
    Teu exagera ou exclui.
    Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
    No mínimo que fazes.
    Assim em cada lago a lua toda
    Brilha, porque alta vive.

    Ricardo Reis, 14-2-1933, heterônimo de Fernando Pessoa
Juliano RigattiPara ser grande
read more

Somos todos Pedro

No comments

É bastante improvável estar na Igreja São Pedro, situada na Avenida Cristóvão Colombo, em Porto Alegre, e não perder-se olhando para os três belos vitrais que estão no topo do seu altar. 

Naquela noite, enquanto eu ouvia as belas canções do coral, eu me perdi. 

Sempre que assumimos algum desafio, do menor ao maior, somos chamados a confiar no que Deus vai providenciar. Com Ele, não há escassez, nada falta. Vejam o belo exemplo da natureza neste início de inverno. Ando pelas ruas e vejo pés e mais pés do chamado limão-bergamota. Quem os cultiva, quase nunca dá conta da abundância da generosidade de suas árvores. Elas os fazem nascer e nos dão de graça. Os galhos pesam, muitos frutos caem e apodrecem. Não deve ser à toa que é na época do ano em que mais precisamos de sua vitamina que o limão nos é dado pela criação. Mas não damos conta, tal é a abundância.

Assim também é a relação com Deus daqueles que a Ele entregam seus projetos, e Nele confiam: tudo nos é dado em abundância. No primeiro vitral, o da esquerda, esta é a mensagem. Como nós, Pedro foi convidado a experimentar a abundância da graça de Deus. Seguiu a orientação de lançar a rede ao mar e surpreendeu-se com a pesca milagrosa quando aquele dia de trabalho já se dava como perdido. Nós podemos fazer o mesmo. Seguir a orientação e lançar a rede. Somos todos pescadores de homens. Somos todos Pedro.

Mas a abundância nos causa estranheza. Em um mundo do individualismo, da competição e do egoísmo, o pouco que temos, batalhamos muito para conquistar. Muitas vezes, invejamos ou tiramos do outro para ter o que queremos. Não reconhecemos a lógica da graça, mas aprendemos a viver apenas a lógica do capital, em que tudo é escasso e desumanizado. Pedro também estranhou e desconfiou da lógica da graça quando, caminhando sobre as águas, Jesus lhe concedeu que fizesse o mesmo. Pedro não confiou e afundou. Desesperado, pediu ajuda novamente. Pediu pela graça em que ele mesmo não acreditou. Não somos todos Pedro?

Somos todos Pedro também quando recebemos de Deus a chave para empreender, para criar neste mundo um mundo melhor para vivermos, para sermos protagonistas e não coadjuvantes. Se Pedro recebeu as chaves do céu, nós recebemos as chaves dos pequenos firmamentos a que somos chamados a construir em nossa famílias, entre os amigos, no trabalho, com quem mais precisa. Somos todos Pedro quando, ao escutar alguém, ligamos a terra e o céu. Somos todos Pedro quando, ao estender a mão, revelamos a um irmão um Deus que é misericordioso mesmo quando tudo parece perdido. Somos todos Pedro quando fazemos uso das chaves que nos foram dadas para abrir a possibilidade do céu para quem só vê a terra. 

Somos todos chamados a ser Pedro. Quando Deus nos oferece sua abundância, quando Deus nos pede confiança e quando Deus nos dá o poder de transfigurar a nossa realidade, criando experiências celestes neste plano.

Somos todos chamados a ser Pedro, mas só ele é São Pedro, o padroeiro, o primeiro papa, a pedra sobre a qual foi construído a nossa Igreja.

Neste triênio em que celebramos os 100 anos da Igreja São Pedro, somos todos convidados a sermos Pedro.

São Pedro, rogai por nós!

Juliano RigattiSomos todos Pedro
read more

Meus 15 meses

No comments

O Gustavo é nosso afilhado, e há pouco completou seu primeiro ano de vida. Gosto de observar como ele percebe o mundo ao redor, o frescor de cada nova experiência, o sabor, as cores, o barulho, o cheiro e a textura de cada novo instante.

Mas antes de olharmos para o Gugu, olhemos para você. Divida a sua vida, tudo que você viveu até aqui, em 15 meses. Não em 15 ou 35 anos. Mas em 15 meses. Reúna todas as conquistas, alegrias, sofrimentos, descobertas, aprendizados e divida por 15. Que vida intensa, hem?

Pois esta pode ser a percepção do Gustavo sobre sua longa vida de 15 meses. Cada dia que vive é uma parcela considerável a ser acrescida aos outros cerca de 450 que se passaram. Um dia para você pode ser nada, pode ser um dia a mais. Para o Gustavo é quase uma vida.

Enquanto o levo no colo olhar as outras crianças ou a natureza, gosto de ir narrando o mundo. Falo dos amiguinhos, aponto os brinquedos, chamo a sua atenção para os detalhes. Neste sábado, fiz a experiência do silêncio, de apenas observar a sua contemplação. Porque nós, os adultos que já vivemos mais de 15 anos, gostamos muito de dar nome a todas as coisas. De classificar todas as coisas. De definir o que é legal, o que sujo, o que pode e o que não pode. Segundo nossas experiências e visão de mundo.

Preferi dar ao Gugu o direito de ver e não julgar. Ou de deixá-lo fazer o seu julgamento — que provavelmente, aos 15 meses, é um não-julgamento.

Perdemos muito da vida, ignoramos a graça que nos envolve porque nos apressamos em ver e julgar. Só reconhecemos o que conhecemos. É partir do que conhecemos vamos construindo nossas realidades, que são apenas percepções do que já vivemos.

Tenha você 15 ou 60 anos, permita-se ver, mas julgar menos. Se ninguém pode viver por você esta experiência, se as melhores escolhas para você é só você que faz, permita-se também viver o presente como se fosse o primeiro de seus dias.

Juliano RigattiMeus 15 meses
read more

Missão ou omissão: como jogar bola sem pisar na grama?

No comments

No dia de 20 de abril de 2017, eu recebi pessoas muito queridas (algumas pessoalmente e outras de forma digital) no auditório da Rádio Aliança para lançar oficialmente o livro O CLJ me enganou. Entre aqueles que eu havia convidado para me ajudar a transmitir a mensagem que o livro expressa, estavo Rodrigo Grecco, compositor de inúmeras canções marcantes no meio católico, e autor de uma em especial: Os Talentos.

Não que nos surpreendesse, mas o Grecco presenteou a todos com uma introdução profunda. Um misto entre a história da criação da canção e uma provocação ao desafio de todos na atualidade: fazer a diferença, transforma o mundo em que vivemos. Abro aspas:

A descoberta da nossa verdade precisa de enfrentamentos. Aquele Jesus que descobrimos no primeiro retiro vai ficar para o resto da vida? Não, ele só começa ali. Esse Jesus vai se transformando junto com a gente. Com os cabelos brancos que aparecem e com os que vão embora também. E a percepção destes enfrentamentos fez com que a canção “Os Talentos” fosse composta.

A gente percebe que, tanto no jovem de antigamente, como no jovem de hoje, a vontade de se esconder é muito grande. Até por causa de uma interpretação equivocada daquilo que Jesus veio dizer para nós. Confundimos a mensagem e achamos que não devemos dizer o que se é, o que se pensa, o que se sente, o que se faz e o que se quer da vida. Mas daí nós lemos os Evangelhos e Jesus é o oposto. Ele está sempre em movimento, ele só vai, só vai, e vai ao encontro das pessoas.

Existe uma expressão muito presente neste dilema: “aparecer-se”. Toda vez que um jovem pega um violão e vai falar na frente dos demais, sempre vai haver um que vai dizer: “Olha lá, tá querendo aparecer, ó.” O jovem vai trabalhar no CLJ. Mas vai trabalhar por quê? Porque quer “se aparecer”, dirão. É fácil pensar isso, é um pensamento bem jovem: as pessoas fazem as coisas porque elas querem exibir a si mesmas, querem “se aparecer”.

E se humildade quer dizer “desaparecer”, puxa vida: como a gente faz para jogar bola sem pisar na grama? Como a gente faz para cantar sem ninguém nos ouvir? Como a gente faz para falar de Jesus sem abrir a boca? Onde está o equívoco naquela dúvida que havia entre não fazer as coisas e fazê-las, na medida em que fazer significa querer “se aparecer”?

E daí vem esta canção, “Os Talentos”, como uma tentativa de buscar lá no Evangelho um motivo para não ficarmos tão passivos neste mundo. E se esta mensagem servia há 30 anos, em um mundo que já nos convidava a um sono eterno, a uma distração sem fim, se isso já era assim, o que se dirá de hoje? O jovem pode passar 30 dias assistindo Netflix, dormindo e acordando sem parar. Onde está o desafio? Talvez o desafio seja pisar na grama, talvez seja escrever um livro, talvez seja fazer uma canção, falar de um jeito que ninguém falou, ter um blog, um vlog, seja o que for que inventarem.

(Crédito da foto de Adriano Silveira)

Juliano RigattiMissão ou omissão: como jogar bola sem pisar na grama?
read more

Há um rato na sala

4 comments

Era uma vez uma família.

Um dia, enquanto conversavam na sala, um berro, um grito agudo os interrompeu. “Que foi???”, a filha encarou a mãe. “Um rato!!!”, respondeu-lhe aquela senhora pálida, do alto de sua histeria e de sua cadeira. Acuado, o pequeno intruso congelou entre a estante e a caixa de som. Só os observava. Nem mesmo  se atrevia a mexer o rabo. Prendeu a respiração. Seis pares de olhos o observavam igualmente paralisados. “Tu vais esperar quantas horas, pai?”, questionou a filha adolescente, exigindo uma atitude. “Não!!!”, a mãe interrompeu a reação do pai, “e sujar a parede?!”. “Então o que vocês querem?”, revoltou-se o filho, pegando, do chão, um pé do tênis. “Deixem ele”, falou o pai, com toda sua autoridade de pai. O rato soltou o fôlego. “Essa noite, montarei uma ratoeira e amanhã cedo tudo estará acabado”. Satisfeitos, todos se desmobilizaram e o bichano desapareceu por baixo da TV.

Havia um rato naquela sala. Assustada, a família queria eliminá-lo dali. Agiram como todos agiriam. Afinal, o rato era o problema. A solução, portanto, era acabar com aquele roedor assustado e restabelecer a paz.

Ao menos até que outro rato aparecesse.

Só há ratos onde há restos de comida, onde há sujeira, onde há lixo exposto. Mas aquela família ignorou essas circunstâncias e depositou a atenção no intruso. É assim que a sociedade costuma agir com seus problemas estruturais. Em consequência, é assim que aprendemos a agir contra a epidemia da dependência química: ainda estamos tentando matar o rato que está na sala.

É preciso avançar. É preciso investigar o que o trouxe e o que o sustenta. Que testemunhos pai e mãe deram a seus filhos? Que comportamentos inadequados a família cultivava antes mesmo da droga chegar? Que maus hábitos são comuns até hoje? A família está disposta a mudar as suas atitudes se o dependente aceitar o tratamento? E quando ele voltar, como será? Em todo lar em que a droga faz um doente há inúmeras perguntas como essas sem resposta. E, lamentavelmente, há milhares de outras famílias, pobres, ricas, com ou sem vivência religiosa, em situação de risco. Mais cedo ou mais tarde, enfrentarão o mesmo drama.

O rato precisa ser eliminado? Claro que sim. Transitando pelas salas de nossos lares, ele pode atrair outros roedores e insetos e transmitir doenças até aos vizinhos. É preciso alertar a população para aos malefícios das substâncias químicas? Claro que sim. Mas isso é muito pouco. O fato é que em uma sociedade desestruturada, com valores superficiais e famílias desnorteadas, o vazio existencial surgirá e a droga será a alternativa de muitos, mesmo que saibam de seus males e de suas consequências.

Famílias, voltemos à cozinha! Vamos em busca do que não está certo, dos restos de comida, do lixo da omissão, dos maus hábitos e dos maus exemplos. Deve haver muita sujeira na despensa, deve haver filhos legislando, permissividade em excesso e falta do amor que ama, mas que não aceita o que está sendo feito de errado.

Há um rato na sala, sabemos que há. É preciso que reconheçamos que ele é só um sintoma inevitável de problemas muito mais graves.

(Artigo publicado em setembro de 2011, e parte integrante do livro “O CLJ me enganou”.)

Juliano RigattiHá um rato na sala
read more

A morte do grão de trigo – parte 1

No comments

Às vezes, fala-se do amor como se fosse um impulso para a satisfação própria, ou um simples recurso para completarmos em moldes egoístas a nossa personalidade. E não é assim: amor verdadeiro é sair de si mesmo, entregar-se. O amor traz consigo a alegria, mas é uma alegria com as raízes em forma de cruz.

Enquanto estivermos na terra e não tivermos chegado à plenitude da vida futura, não pode haver amor verdadeiro sem a experiência do sacrifício, da dor. Uma dor que se saboreia, que é amável, que é fonte de íntima alegria, mas que é dor real, porque supõe vencer o egoísmo e tomar o amor como regra de todas e cada uma de nossas ações.”

– São Josemaria Escrivá

 

Começo esta reflexão central contando que durante grande parte da minha juventude, a cruz, o símbolo máximo do cristianismo, não me chamava a atenção. Ela era importante, claro, mas tinha em torno de si um conceito tão fechado, uma ideia tão acabada, quase uma obviedade, que eu não me atrevia a questionar ou a avaliar a importância que ela tinha na minha vida. Ela era a cruz, com toda sua imponência, mas ainda fazia pouca diferença pra mim.

Até o retiro do meu CLJ, o 24º CLJ de Canoas.

Incrível a nitidez da lembrança daquele dia. Cantavam “Ninguém te ama como eu” em uma das capelas do Seminário Maior de Viamão, enquanto eu olhava para a cruz com um novo olhar. Com o rosto úmido pela emoção, eu buscava entender o que significava aquele gesto. Por que dizem que Ele morreu por mim? O que isso tem a ver com amor? O que eu fiz de tão grave para que alguém tenha que morrer? E que diferença fez isso tudo? O que aquilo mudava na minha vida aquele dia? A cruz era um objeto e o seu significado apenas uma teoria. Faltava a experiência humana da cruz.

A dúvida estava longe de ser um ceticismo. Era simplesmente um motivo para eu não parar de buscar. Saí daquela capela envolvido em um sentimento que a linguagem não alcança e que por isso nem me esforçarei em tentar reproduzi-lo aqui. Quem viveu sabe o que é o despertar espiritual de um CLJ.

O tempo foi passando, e ao longo do caminho, fui me aproximando da cruz. Mesmo que nunca tivesse conseguido recolocá-la em uma caixa, com seu significado pronto, sem saber, eu compreendia que a minha relação com ela se daria como em um processo. Um longo caminho de aproximação.

Minha memória me indica que comecei a compreender a morte de Jesus Cristo pelo amigo Eduardo Beilner. Quando um dia, em uma de suas palestras, ele falava sobre o amor. Não, não se referia à esposa nem aos gatos aquele dia. Estávamos em um contexto de grupo de jovens, no CLJ ou no Cenáculo de Maria. Lembro de tê-lo ouvido dizer o seguinte: que o amor não é afeto, que amor é atitude, é decisão, algo assim. E depois não sei mais se o que eu lembro é a continuação da palestra do Dudu ou a minha própria elaboração sobre tudo isso. Nunca mais parei de pensar sobre isso e de sentir este novo significado a cada dia.

O amor, portanto, é a chave que leva à compreensão da cruz.

Mas aí chegamos a um novo problema – e não menos complicado do que a incompreensão da cruz: a ignorância com relação ao amor.

Foi necessário que eu percorresse um novo caminho até que isso ficasse claro. Faltava a experiência humana do amor.

Em abril de 2010, participei do 140º Cenáculo de Maria do Vicariato de Canoas, e lá conheci a história de um dependente químico em recuperação, que fazia o retiro pela primeira vez. Este encontro mudaria para sempre a minha relação não só com a causa da dependência química, mas com o tal amor.

Depois daquele curso, me envolvi bastante com trabalhos voluntários associados à prevenção, tratamento e recuperação de dependentes químicos, e conheci um programa que apoia familiares de usuários de drogas, chamado Amor-Exigente. E isso mudaria para sempre a minha forma de ver o amor – e de ver a cruz.

O princípio básico do Amor-Exigente é que o amor entendido como romantismo, afeto, carinho ou desejo do outro, este amor não existe. O que existe é romantismo, afeto, carinho ou desejo do outro. São coisas diferentes. Não são o amor. Quem auxilia um usuário de drogas a vencer o vício e reviver precisa amá-lo de verdade. Precisa praticar com ele o mesmo amor que o Dudu já tinha conceituado lá atrás: aquele que é comportamento, compromisso, decisão, atitude. Quem tem um filho, precisa praticar o mesmo tipo de amor. Quem tem uma esposa, um esposo, namorado, mãe, pai. Todos nós somos convidados a praticar este amor.

Porque o amor de Deus e o amor vivido por Jesus aqui conosco foi exatamente este. Não lembro de passagens bíblicas em que Cristo pega alguém pela mão para fazer algo. Todas as histórias de milagre, de grande cura, de grande libertação são de pessoas que ouvem seu chamado e decidem caminhar. Deus tem por nós não um amor conivente, facilitador, mas um amor que constrói porque exige nosso melhor, nossa escolha e nossa persistência.

Mas não é fácil praticar esse amor verdadeiro sendo humano. É praticando este amor que um pai é capaz de dizer que ama o seu filho, mas não aceita o que ele faz de errado. É este amor que ama uma pessoa pelo que ela é e pode vir a ser, e não pelo que se quer que ela seja. É este amor que permite que o familiar viva as consequências de seus atos como aprendizado da vida. Não é assim que Deus nos trata também? Sua mão está sempre estendida, mas ela precisa do movimento – muitas vezes doloroso, incompreendido – de ir ao seu encontro.

Expliquei que entendi a cruz por meio do amor, mas que antes precisava entender o amor. E entendi. O amor verdadeiro é o que dá a vida para que o outro possa viver plenamente. Numa situação em que é necessária uma correção ao filho menor, o amor verdadeiro entra em cena e o repreende. O filho chora, mas o pai sabe que, embora o desleixo fosse mais fácil, a experiência de não se deixar manipular foi o mais correto a se fazer. Neste momento em que o pai sofreu, morreu um pouco pelo filho, ele praticou o amor. Morreu como o grão de trigo. E gerou vida.

E a cruz, afinal? Ela é o sinal máximo do exemplo que Jesus Cristo nos deu: foi até o fim, derramou até a última gota de sangue e morreu para nos mostrar que somente assim, morrendo por amor ao outro, é que vamos construir ambientes mais respeitosos, famílias mais saudáveis e relações de paz.

Por isso, Jesus nos salvou, afinal. Nos salvou porque nos deu a receita vital: se o grão de trigo cai na terra e não morre, nos disse ele em uma de suas parábolas, ele não produz frutos, não gera vida. E disse-nos ele em outro momento: façam isso em memória de mim.

Ele entregou seu corpo e seu sangue como prova de que dá certo. A Páscoa da Ressurreição é a prova máxima de que dá certo. É este o amor que modifica o comportamento de alguém. Um amor que faz morrer em nós o egoísmo e as relações individualistas. Um amor que nos faz reviver a trajetória da semente, que, alheia às suas razões, às suas vaidades, morre para que a vida possa brotar.

Este artigo é parte integrante do livro O CLJ me enganou. Para adquirir um exemplar da obra, clique aqui.

Juliano RigattiA morte do grão de trigo – parte 1
read more

Maria não é quem você pensa

No comments

Bastaria à nossa fé o exemplo de entrega de Maria. De alguém que num belo dia recebe a visita de um anjo, que lhe informa que sua vida viraria do avesso, que ela seria levada a transgredir todas as normas morais da época e leis naturais da vida, que colocaria seu companheiro em maus lençóis, e que sua vida nunca mais seria a mesma – sem nem saber como seria esta outra vida; e ela prontamente se coloca à disposição. Entrega-se integralmente porque sabia quem fazia o convite e de onde vinha o chamado.

Só o desafio de trazer para nossa vida a força e desprendimento deste gesto já nos seria suficiente. Porque somos pessoas de muito pouca fé, como já nos jogou na cara o próprio Jesus. Confiamos, desde que saibamos onde estamos pisando. Acreditamos, desde que saibamos para onde estão nos levando. Arriscamos, desde que saibamos o tamanho do risco. Temos sempre nossas reservas, e enquanto as tivermos, enquanto elas forem a nossa segurança, nunca repetiremos o gesto de Maria, de quem se entregou voluntariamente aos planos de Deus. Lembram do jovem rico que foi conversar com Jesus? Ele contou que se considerava um homem exemplar, um sujeito correto, mas que não abria mão de suas riquezas, de suas reservas. Voltou triste, triste como era sua vida, mas não abriu mão do que lhe dava segurança.

Descobri, em um dos livros do Padre Haroldo Rahm, uma definição muito interessante para um modelo mental que alimentamos, muitas vezes, até o fim da vida, chamado habilidade de sobrevivência. Habilidades de sobrevivência são comportamentos que repetimos hoje porque em algum momento de nossa vida eles foram úteis para nossa sobrevivência. A timidez, por exemplo, pode ser uma habilidade de sobrevivência para aqueles que são inseguros com relação à sua personalidade, sua visão de mundo, suas opiniões. Geralmente, são pessoas que possuem uma forma especial de se expressar no mundo, diferentes da média dos demais. Podem possuir um talento desenvolvido, uma capacidade específica que se sobressai da maioria. E por isso se fecha, se exclui, se limita. Para sobreviver à crítica, ao olhar preconceituoso, à não aceitação. Porque todos queremos ser aceitos, participar dos grupos, viver em harmonia com os demais, ser acolhidos e queridos. E quando isso se põe em risco, acionamos uma habilidade de sobrevivência.

Jesus pode um dia, num retiro de CLJ, numa confissão, chamar este jovem tímido e dizer-lhe: sei que fazes o que é bom, sei que buscas a verdade, sei que honras teus pais, chegou a hora de confiar no amor infinito que Deus tem por ti, no amor daquele que te deu as capacidades especiais que tens, e viver a vida plenamente, porque foi para isto que foste criado. Ao ouvir tais palavras, o jovem vê-se em estado de perigo, o perigo do desconhecido, aciona sua habilidade de sobrevivência e, entristecido, sabota seu potencial mais uma vez e vai embora. Quem se apega ao conhecido, nunca conhecerá o desconhecido.

Certamente, Maria sentiu medo. Mas havia entre ela e Deus uma relação de intimidade tão bem desenvolvida que ela sabia que seus pensamentos e suas emoções não podiam impedi-la de viver plenamente a vida que Deus havia preparado. Teve fé.

Só este olhar sobre Maria já nos serviria como uma lição vital. O seu exemplo de entrega já seria o bastante para nossa condição de homens e mulheres sem fé.

Mas Maria é mais.

Comecei minha relação mais íntima com Deus indo às missas da igreja Nossa Senhora das Graças, em Canoas, da qual meus pais participam até hoje. E este título de Maria, com suas mãos sempre estendidas aos fiéis, revela a outra faceta de Maria à qual quero me referir: de alguém que intercede, que apoia, que ouve, que acolhe.

Em cada canto deste país, das maiores cidades até aquelas onde mora uma pequena porção de pessoas, é muito comum haver uma devoção especial a algum título de Maria, entre todos aqueles que sabemos que existem. São peregrinações, procissões, novenas e promessas em torno de imagens de Maria com seu gesto que manifesta prontidão. E o que há de mais comum entre todas estas devoções é exatamente o que, desde guri, identifiquei em Nossa Senhora das Graças: a sua imagem feminina de mãe, que recebe, que protege, que põe no colo. Para muitos de nós, Maria é esta dimensão de acolhimento da Igreja ou mesmo da relação direta com o sagrado. E todos precisamos de repouso, de um calor que consola, de um refúgio seguro para aqueles momentos em que a noite oprime e a espera pelo outro dia amedronta.

Mas, como disse no título deste texto, Maria não é quem você pensa que ela é. Não é só isso. Não é só alguém que, humana como nós, nos deu o maior exemplo de fé; nem só a figura materna que nos embala e protege sob seu manto sagrado. Maria é muito mais.

Se observarmos bem, durante todas as passagens bíblicas que a citam, fica claro que Maria tinha por Jesus Cristo, e tem por cada um de nós, um tipo de amor muito diferente do que aquele a que estamos acostumados a conviver em nossas relações. Gosto de olhar para o comportamento de Maria ao longo de toda subida de seu filho ao local da crucificação, e deixar vir à mente cenas do filme A Paixão de Cristo, de Mel Gibson. O papel que ela cumpre ali pode nos fazer olhar para o modelo de mãe que ela construiu desde o dia em que o filho se perde no templo, desde o dia da festa de casamento em que o vinho acabou.

Maria é um modelo de amor verdadeiro. De um amor que, por mais que sinta vontade, não impede o filho de fazer suas escolhas; que, por mais que deseje, nunca percorre o caminho pelo filho; que, por mais que sofra, nunca permite que o seu sofrimento seja razão para que o filho não aprenda as duras lições da vida.

Em entrevista na Rádio Aliança durante um tempo pascal, o Padre Eduardo Delazeri disse conhecer as três maiores dores do ser humano, que segundo ele são a traição, a ingratidão e a injustiça. “Não há nada que doa mais. Doem muito mais que uma fratura exposta de um osso nosso; e digo isso porque eu já tive uma fratura exposta, e também já fui traído, já fui injustiçado e já foram ingratos comigo”, contou ele. Maria, em sua sabedoria, sabia que seu filho sofreria, antes de morrer, as maiores dores que um filho pode experimentar na vida. E não impediu que isso acontecesse. Maria viu Jesus ser condenado à morte injustamente; viu a ingratidão de seu povo com ele; e viu a traição de Judas, e a negação de Pedro. Volto ao filme para lembrarmos da expressão de Maria vendo seu filho ser julgado e condenado pelo povo, vendo seu filho ser açoitado, cair com o peso da cruz, completar a subida e ser morto, e morte de cruz.

Não me refiro aqui a um amor omisso, descomprometido, negligente. Mas a um amor silencioso. Maria sofreu e silenciou. E em seu silêncio nos faz pensar, como diz a bela e inesquecível canção “Prece universal à Maria”, do Padre Júlio Gotardo.

Somos muito apegados às coisas e especialmente às pessoas que amamos. Quando alguém morre, dizemos que perdemos alguém. Mas isso não pode justificar em nós um comportamento que atrapalhe a experiência de vida de quem amamos.

Maria sabia que sofrimento era o que Jesus havia de passar. Sabia que, por mais que sofresse, não caberia a ela fazer qualquer tipo de intervenção. Ou queríamos nós que Maria tivesse impedido o calvário de seu filho? Que história de vitória da morte sobre a vida teríamos para contar?

Maria sabia que classificar o sofrimento como negativo, e a alegria como positiva, é uma limitação de nosso tempo. Na floresta virgem, onde tudo parece caótico ao olhar do homem da cidade, a vida muitas vezes nasce de uma matéria putrefata, podre, em decomposição. Temos uma lógica do funcionamento da vida bastante peculiar, cultural e restrita ao nosso tempo e espaço. A dor, o sofrimento, a morte são indefectíveis, inevitáveis, pessoais e intransferíveis. Como o sorriso, a alegria e a vida.

Portanto, Maria é mais do que você pensa. Ela é entrega e é acolhimento, mas é ensinamento do verdadeiro amor. Aquele que permite a você fazer suas escolhas, carregar suas cruzes, cair seus tombos e morrer suas mortes. Sem impedi-lo. Para vê-lo mais lúcido no momento das escolhas; mais forte no momento das cruzes; mais resiliente nos tombos, e mais consciente nas grandes perdas. O Calvário nos ensinará a viver, como diz outra bela canção, “Coração de mãe”, da cantora Mariani.

Primeiro foi Deus que nos amou desta forma. Deu-nos a vida, com seus momentos doces e amargos, e nos convidou a vivê-la plenamente. Depois, quando precisou estar mais próximo de nós, pediu que Maria, gente como a gente, nos deixasse esta grande lição.

 

(Neste momento, como oração, sugiro que você ouça a canção “Prece universal à Maria”. Depois, assista ao clipe “Coração de mãe” e, na sequência, reze uma Ave-Maria, como forma de acolher da Mãe os seus maiores dons: a entrega, o carinho e o amor. Shalom!)


Este artigo é parte integrante do livro O CLJ me enganou. Para adquirir um exemplar da obra, clique aqui.

Juliano RigattiMaria não é quem você pensa
read more

40 anos de CLJ

No comments

Não venha me dizer que alguém, algum dia, entrou no CLJ para ter a experiência de Jesus Cristo. Para ser convertido. Para ser evangelizado. Ou melhor, para se tornar um líder.

Nem vem.

Os motivos para a primeira tarde deste movimento sempre foram outros. Mais ou menos santos, mas foram outros. Por isso que sempre disse que O CLJ me enganou ao longo desses 40 anos. Você que começou pela insistência de um amigo. Você que entrou para se aproximar daquela guria. Para jogar bola com a turma. Para poder frequentar as aulas de violão. Porque a família toda estava lá — ou só a irmã mais velha. Você que entrou com uma data para sair. Você mesmo. Você que entrou e ficou, você foi enganado. Porque ninguém, no auge dos seus 14 anos, é capaz de supor o que viveria a partir da decisão de ficar. Até porque não foi uma decisão. E até porque com esta idade não se decide nada na vida. Você foi ficando, foi ficando. Até o dia que decidiu sair. Que também não se decide sair. Quando saímos é porque já estávamos fora há algum tempo. Depois do CLJ, do tempo que você ficou lá, você se transformou no que você é hoje. Se já lá o que for. Está bem, no mínimo, a sua espiritualidade é outra. Ou é completamente outra. Como no meu caso.

Mas voltando ao fato de termos sido ludibriados. Se serve de consolo, saiba que nem você, nem eu, fomos seduzidos por um movimento qualquer. “Se este Movimento vem de Deus, ele vai durar e trazer muitas vocações. Mas se não vem de Deus, daqui a pouco nós vamos acabar com isso”, foi o aviso que, em 1975, Dom Zeno ouviu do então Arcebispo de Porto Alegre, Dom Vicente Scherer. Suponho, portanto, que estejamos falando de uma iniciativa de Deus.

E sobre esta obra divina, deixem eu lhes dizer algumas coisas.

Como cristão, participei de movimentos jovens durante mais de 15 anos. E ainda tenho algum contato com eles. Fui me dando conta ao longo do tempo que o jovem precisa honrar suas experiências cristãs alterando o seu comportamento no mundo. A tal “ação” do tripé estudo-piedade-ação e as tais “obras”, a que se refere São Tiago quando diz que sem as quais a fé é morta, não se resumem à caridade, como poderíamos supor. Também são a caridade, mas não só. A experiência com Jesus Cristo nos torna capazes de agir como Jesus Cristo. Em todas as nossas relações. Porque é de relações que a vida é feita, meu caros. Entre amigos, no trabalho, na família, no futsal, na balada. Você aconselha ou se cala? Você aponta o dedo ou se acovarda? Você tolera ou explode? Você julga ou analisa os contextos? Você elogia ou se envaidece? Você compreende seus limites ou os desconhece? Você coopera ou oprime? Você esgota todas as forças ou você se ama?

Olhemos para a história que nos trouxe até aqui. Porque vocês e eu somos produto da história.

No ano de 1974, em plena turbulência política e social do Brasil, quando a Igreja tentava consolidar no país a sua opção pelos pobres, desvinculando-se das classes dominantes, Porto Alegre assistiu o surgimento de um dos mais transformadores grupos de jovens da região Sul do país: o Curso de Liderança Juvenil (CLJ). Depois do Emaús, o CLJ foi um dos primeiros movimentos a reunir novamente os jovens – coisa que o golpe militar proibiu à base de agressões, torturas e matanças – e fazê-los canalizar toda energia pelo anúncio do evangelho e da mensagem de Jesus Cristo.

Em março de 2009, durante entrevista que fiz com Dom Zeno, fundador do CLJ, bispo de Novo Hamburgo e presidente do Regional Sul 3 da CNBB, reconheci a importância histórica deste grupo. Dom Zeno contou-me que ficou todo o ano de 1973 sem distribuir comunhão a jovens. Acredite: nenhum jovem comungara com ele durante todo o ano, na paróquia São Pedro, em Porto Alegre.

Não havia jovens na missa. Nem, sequer, um.

E parte da explicação está aqui: a Igreja apoiara a repressão nos anos 60. E tenho a impressão que nem as tentativas de modernização surgidas a partir do Concílio Vaticano II, em 1962, e da II Assembléia Geral da Conferência Episcopal Latino-Americana, em Medelin, na Colômbia, em 1968, conseguiram renovar suficientemente a imagem da Igreja Católica, a ponto de fazer a juventude participar novamente – como o fizera na Ação Católica e na JUC (Juventude Universitária Católica), por exemplo.

Mas os jovens voltariam a se reunir em torno de Jesus Cristo.

E vejam a coincidência dos números: 74 crismandos, em 1974. Foi por meio da Crisma, que Dom Zeno reaproximou a juventude de Deus. Um retiro com crismandos, realizado em 14 e 15 de julho de 1974, com poucas adesões, transformaria para sempre a cara da Igreja jovem no Rio Grande do Sul. Mesmo com o relato quase emocionado do padre, continuei intrigado.

– O que os fazia voltar? – perguntei.

Quase não terminei de perguntar e já ouvia a resposta de Dom Zeno. Aquilo não estava só na ponta da língua, como dizemos, era uma convicção.

– A descoberta de Jesus Cristo – disse ele, taxativo.

E dali, não parou mais de listar razões que lhe eram tão verdadeiras como se aqueles 19 jovens estivessem à sua frente naquele momento.

– A possibilidade de poder conversar com ele diretamente e ao vivo. E se ele está aqui, vivo, diziam, então valia a pena. Aquele Jesus era uma novidade fantástica para eles. Eles acreditavam em um Jesus morto na cruz, de uma morte que aconteceu há dois mil anos e que não tinha mais nada a ver com eles. Conheciam um Cristo sofrido. Mas o Cristo que está vivo no sacrário, conversando conosco, desse eles não tinham ideia. Quando eles descobriram este outro Cristo, eles se empolgaram por ele.

O fato é que os jovens conheceram um Jesus Cristo humano, próximo. E gostaram de revê-lo toda semana, gostaram de se reunir em torno dele. Os movimentos prosperaram e se multiplicaram. Nessas qiuatro décadas, só no CLJ, milhares de adolescentes tiveram a oportunidade de conhecer o evangelho e a receita de felicidade ensinada por Jesus Cristo.

Mas a juventude se acomodou.

Sem entrar na discussão das inclinações políticas presentes nos movimentos populares da Igreja nas décadas de 60 e 70, precisamos voltar nosso olhar para aquela época e perceber que só faremos a diferença se formos ao encontro de quem precisa e se vivermos de acordo com os valores que pregamos. Jesus Cristo não veio para os fortes, mas para os doentes. Não ficou em sua terra natal, mas viajou ao encontro dos necessitados. Não fez pelos apóstolos, mas os ensinou a pescar. Não foi condescendente, mas firmou o pé em suas convicções.

Pense no seu grupo.

Como os jovens se comportam em casa depois de voltarem saltitantes de um retiro? Em que aspecto as relações no trabalho melhoram depois de três dias olhando para dentro de si e revendo atitudes? Não é fácil viver a lógica do amor, mas é o único caminho. Sei que já existem realidades que me contrariam, mas tenho certeza que a provocação é oportuna.

Deixo aqui trecho da segunda carta de São Paulo ao Tessalonicences, escrita provavelmente no ano 70:

“Por isso também rogamos sempre por vós, para que o nosso Deus vos faça dignos da sua vocação, e cumpra todo o desejo da sua bondade, e a obra da fé com poder; Para que o nome de nosso Senhor Jesus Cristo seja em vós glorificado, e vós nele, segundo a graça de nosso Deus e do Senhor Jesus Cristo.”

É urgente que Deus no faça dignos de nossa vocação, como pede São Paulo. Como Zaqueu, que subiu em uma árvore para ver Jesus Cristo, porque alguma coisa o chamava, precisamos também ouvir esta voz que chama e fazer o esforço da subida. Há milhares, milhões, precisando de nós. Há gente sem ter o que comer, há gente satisfeita com a vida egoísta que leva, há gente sem motivos de ver o sol do dia seguinte nascer, há gente dependente de susbstâncias químicas para ter algum prazer na vida. A messe é grande e ocasião não nos falta. Há muita gente precisando de nós. Precisando da juventude e da Igreja do futuro, que está sendo construída agora. Rezemos para que Deus entre na vida de nosso movimentos, mexa na estrutura, sare as feridas da acomodação, da hipocrisia, e os coloque à buscar. Mais 40 anos.


(Artigo publicado em julho de 2014 e parte integrante do livro O CLJ me enganou.)

(A foto deste artigo tem crédito do site EaíTchê – Serviço de Evangelização da Juventude: https://www.eaitche.com.br/portal/noticias/regional/clj-40-anos-de-lideranca-jovem)

 

Juliano Rigatti40 anos de CLJ
read more

O CLJ me enganou

151 comments

Eu era um guri verde com os meus quatorze anos. Dentro da minha jaqueta parcá bege, da minha segunda ou terceira calça jeans e atrás da armação dos óculos, eu era um guri verde. E por ser assim, acho que exatamente por ser assim, fui enganado. Ludibriado pelo CLJ durante longos seis ou sete anos da minha vida.

E vou explicar isso pra vocês.

Para quem não o conhece, a sigla quer dizer Curso de Liderança Juvenil. É um movimento de jovens da Igreja Católica do qual participei durante uma longa e marcante fase da juventude.  Já desconfiava faz tempo de toda essa farsa. E a confirmação de tudo começou há algumas semanas. Quando conheci de perto e passei a admirar o trabalho do Movimento Cultural Canta Brasil.

A Jac, amiga minha e colega de trabalho, e eu fomos visitar, em Canoas, o Instituto Movimento Cultural Canta Brasil, no bairro Mathias Velho. O Canta Brasil é uma ONG nascida na periferia da cidade e obcecada em usar a arte para mudar a vida das pessoas. Isso
desde cedo. Desde a infância e adolescência. Na Casa Azul, que tem esse nome porque é uma casa e porque é azul, jovens dos bairros Mathias Velho, Guajuviras e Harmonia, todos de Canoas, recebem aula de dança e de música nos horários em que não estão estudando. Mas as aulas não formam dançarinos, nem formam cantores.

Sabem que muitas vezes eu pensei em não ir mais? Eu, um guri verde, sendo iniciado em um grupo de jovens, com mais de cem desses jovens, com a triste impressão de que acabaria perdendo a minha liberdade de sábados à tarde em troca de horas e horas de oração, de palestras, de exposição a pessoas novas e de oração de novo. Mas precisou de muito pouco tempo para que o Juliano daquele tempo mudasse de idéia, descobrisse que não rezaria demais, nem estudaria tanto assim – embora, mais tarde, eu fosse lamentar a falta de tempo para fazer mais das duas coisas. Demorou pouco tempo para eu pegar gosto por aquela gente, por aquele grupo.

O Canta Brasil tem uma estrutura de trabalho que dá mostras da seriedade com que a coisa é feita. Num primeiro momento, durante variadas oficinas artísticas aplicadas com centenas de crianças e jovens de oito escolas de três bairros, a coordenação, acompanhada por consultores profissionais remunerados, começa a identificar talentos e lideranças em ruelas e casebres onde a lógica, em muitos casos, só daria abrigo a famílias desestruturadas, crianças traumatizadas, adolescentes traficantes e jovens prostituídas. O método aplicado, chamado de tecnologia social, contraria essa coerência.

Fiz muito no CLJ que contrariou minha história de vida de jovem tímido e inseguro. Li em público, falei em público, dei palestras em público. Aprendi a tocar violão, ensinei a tocar violão, cantei, bati palmas e dancei. Liderei grupos de trabalho e coordenei retiros de três dias. Xinguei, fui xingado, magoei, fui magoado. Chorei e também vi muitos chorarem. Uns de alegria, outros de pura decepção. Levei alguns para participar do CLJ e conheci muitos amigos lá. Muitos mesmo. Gente de quem sou amigo até hoje. Vi gente crescer. Entrar novinho e verde como eu e ficar grande. Vi gente ensinar o que aprendeu. Vi gente abraçando desconhecidos e vi gente confidenciando segredos para um rosto que era um sorriso só. Vi a minha mudança e a de muita gente no CLJ.

Mais de três mil crianças e jovens já passaram pelo Canta Brasil desde o seu início há nove anos. Atualmente, são quase 600. Muitos hoje estão na faculdade, muitos fazem inglês, freqüentam academia. Muitos melhoraram seu aproveitamento no ensino fundamental e no ensino médio. Muitos outros permitiram que a ONG entrasse até em casa, envolvendo pais e irmãos na missão de ganhar dignidade e transformar a sociedade. No mínimo, da sociedade pequenininha da qual fazemos parte. Do nosso círculo de amigos e vizinhos. Alguns do Canta Brasil hoje são quase artistas. Cantam, dançam, compõem com gente famosa. Jovens que um dia foram beneficiados pela tecnologia social que os transformou. Levam adiante uma corrente do bem que não se paga, que não tem preço, mas que ao mesmo tempo muda destinos em uma sociedade movimentada pelo capital. “Aqui, a arte não os ensina apenas a serem artistas. Aprendem sobre disciplina, sobre ética, sobre cidadania, sobre auto-estima, sobre dignidade, sobre estética, sobre bons modos”, contou-nos uma das profissionais consultoras do Canta Brasil quando Jac e eu estivemos na Casa Azul. Como eu, eles também são enganados.

Durante seis ou sete anos fiz parte de uma sociedade paralela, que acontecia na maior parte do tempo nas tardes de sábado, em um salão paroquial de alguns poucos metros quadrados. Sempre disse isso pra mim mesmo e para alguns mais chegados. Porque o CLJ era uma sociedade, sim senhor. Para viver ali era preciso perdoar, era preciso não mudar de opinião, era preciso fazer diferente de todo mundo, para mostrar o verdadeiro valor de alguma coisa. Era preciso consolar, engolir sapos, entusiasmar, cantar e fazer silêncio, um profundo silêncio muitas vezes. Foi preciso valorizar as pessoas por mais que elas insistissem em mostrar novos defeitos, por mais que elas não tivessem a mesma opinião sempre, o mesmo comportamento que o meu. Também foi preciso fazer primeiro. Liderar pela palavra e liderar pelo exemplo. Tivemos que planejar muitas coisas e tivemos que riscar muita idéia no papel. Corremos muito para ficar tudo pronto, improvisamos e esquecemos de cumprir muita promessa. Vimos a sala sempre cheia e também a vimos com alguns gatos pingados. Valorizamos os que estavam e reclamamos da cadeira vazia. Vi muitos de quem eu gostava e até admirava deixar o CLJ. Tinham envelhecido ali e a vida os tirava de nós. Outros chegavam para continuar o trabalho. Vi o movimento se renovar exatamente dessa forma.

O que o Canta Brasil me fez lembrar do CLJ é que tanto o Canta Brasil quanto o CLJ são ferramentas de transformação social. Eu fui um transformado socialmente. Milhares de outros jovens que já passaram pelo CLJ também foram transformados. Hoje são professores, são médicos, são jornalistas, são advogados, são pais e mães de família, são padres, são empreendedores, são palestrantes, são criaturas humanas, são cidadãos. Como as crianças do Canta Brasil. Um movimento que trouxe do AfroReggae, do Rio de Janeiro, um jeito de fazer as coisas serem diferentes para os seres humanos. Sem cirurgia, sem penitenciária, sem cadeia, sem ganhar na megasena.

Por isso que, sem saber, eu e você, que já foi do CLJ, fomos enganados. Achamos que estávamos ali para aprender a rezar, para entender a importância do sete dons do Espírito Santo, do exemplo de Maria, a mãe de Jesus. Pensei que aquele curso lá no seminário de Viamão fosse para converter jovens e reforçar a fé deles em Jesus Cristo e na igreja católica. Pensei que me elegeram para coordenar o movimento ali da paróquia para fazê-lo crescer, para receber mais jovens, e para dar continuidade ao grupo. Que nada! Mesmo que hoje eu reze e que converse com o mesmo Jesus Cristo que me apresentaram um dia no CLJ, há mais de 12 anos, me sinto enganado. Um idiota.

Como o Canta Brasil também não existe apenas para formar artistas, o CLJ não nasceu para ensinar a rezar ou inflar as missas estado a fora. Mais do que participar de reuniões intermináveis, aprendemos a fazer gestão de pessoas; mais do que fazer silêncio, aprendemos a pensar na vida; mais do que fazer diferente, bolar uma coisa legal e escrever um texto que tocasse as pessoas, estávamos sendo pedagogos, publicitários, jornalistas, estávamos sendo criativos! Mais do que confira no pedido feito em silêncio na capelinha, aprendemos a valorizar a fé. Mais do que fazer primeiro, aprendemos a liderar.

O próximo sábado vai celebrar, com uma janta na paróquia Nossa Senhora das Graças, em Canoas, os 30 anos do Movimento Curso de Liderança Juvenil, o CLJ, dessa cidade. Mesmo não estando, todos as centenas de milhares de jovens que emprestaram parte de suas vidas a grupos do CLJ país afora estarão jantando conosco. Muitos de nós hoje, mesmo enganados, ludibriados, podemos olhar pro canto esquerdo de cima do olho, lembrar do tempo bom que não volta nunca mais e dizer, a si mesmo, com orgulho, que fez o mundo um pouco melhor porque nele viveu e porque por ele passará.

Em foto clássica, retiro do CLJ da minha irmã, de quem recebi o convite para fazer parte do CLJ

Em foto clássica, retiro do CLJ da minha irmã, de quem recebi o convite para fazer parte do CLJ


(Este artigo foi publicado em agosto de 2008, e hoje é parte integrante do livro O CLJ me enganou.)

 

Juliano RigattiO CLJ me enganou
read more

Só por hoje

9 comments

Há uma camiseta de tecido claro estendida no chão da entrada do salão do Centro de Recuperação Imaculada Conceição, em Gravataí, no Rio Grande do Sul. Ela é pisada por todos os que entram no local, rapazes dependentes químicos, seus monitores e visitantes. Molhada e completamente tomada por uma fina areia marrom, poucos se dão conta da sua presença. Embora ela tivesse sua função, com a umidade e a chuva do último sábado, seria inútil qualquer tentativa de manter o salão seco e limpo. Mas ela permaneceu ali, imunda, durante todo o dia, enquanto rezávamos, partilhávamos experiências de vida e plantávamos esperança no coração de 38 adictos em recuperação.

Já era escuro, meus olhos inchados e embaçados de emoção, quando reparei a primeira vez na tal camiseta, enrolada no piso frio e escorregadio por onde passávamos. Alguns se despediam, prometendo voltar, outros, agradeciam pelo dia e, sem dizer, nos revelavam, pelo brilho do olhar, que aquele era, mais uma vez, o primeiro dia de suas vidas.

A camiseta suja serviu de metáfora do que vivemos no 1º Retiro do Movimento Cenáculo de Maria na CRIC, casa que acolhe cidadãos que desejam limpar seu organismo e libertar sua alma das drogas. Chegam ali como aquela camiseta, tomados pela sujeira da falta de dignidade, desprezados por uma sociedade avessa aos valores cristãos e com quase nenhuma esperança. Muitos deles, conhecendo a pobreza e a dificuldade, fizeram da droga uma tentativa de fuga da realidade. Outros, como o rapaz que nos deu seu depoimento e com quem conversei, ascenderam financeiramente e despencaram ao fundo do poço. Restaram alguns reais para pagar a triagem e cobrir os custos mensais com o Centro. “Tinha uma esposa, um filho, abri um negócio próprio, cheguei a ter 15 funcionários, e perdi tudo”, contou-me. A decisão pela recuperação veio dentro de um motel, enquanto consumia, sozinho, a última quantidade de cocaína que levava nos bolsos. “Olhava para os espelhos e não me via. Tive tudo, mas faltava-me Deus”, concluiu.

A CRIC é apadrinhada pela paróquia Imaculada Conceição, da Igreja Católica, localizada no bairro Rio Branco, em Canoas. O movimento Cenáculo de Maria, da mesma paróquia, do qual participo, foi quem idealizou o retiro. A ligação do Cenáculo com as drogas já contei aqui. Graças a isso, tínhamos também entre nós, no sábado, cenantes que livraram-se da dependência química e hoje visitam a CRIC pra testemunhar que há, sim, dias iluminados fora do túnel do vício. “Eu nunca vi eles tão felizes, cara, nunca. E pra mim, que já estive aqui, então, isso está sendo maravilhoso”, ouvi de um deles.

Durante os nove meses de tratamento na CRIC, os jovens e adultos em recuperação estudam a Bíblia, trabalham na horta, na ordenha dos animais, na manutenção da estrutura e na preparação das refeições. De todas, a tarefa mais exigente, certamente, é olhar pra si próprio. “Acordo todos os dias e tenho que me encarar, admitir que fiz tudo errado e recomeçar”, disse um dos residentes, que já está no Centro pela segunda vez, depois de ter ido embora e recaído na primeira tentativa.

Sempre que tive oportunidade, parabenizei uma daquelas pessoas pela coragem. Não é fácil tomar a decisão de ir até a fazenda. Menos fácil é dizer para si, a cada manhã, só por hoje não vou mais pecar. Porque lá, eles vivem um dia de cada vez. Como nós vivemos, sem nos dar conta. Para emagrecer, para passar no concurso, para construir uma carreira bem-sucedida. Cada uma dessas conquistas, como para largar o vício, requer coragem de viver um dia de cada vez. Mas mais vital do que qualquer objetivo que tenhamos aqui fora, lá na CRIC só o que eles querem é merecer suas vidas de volta. E como querem.

Bem no início do dia que passamos juntos, sentei-me num dos primeiros bancos do salão, depois de uma das primeiras palestras, e ouvi-os cantar junto conosco. Mas não cantei. Porque não pude. Era forte e bonito demais ouvir a voz de cada um deles transformada em uma só, preenchendo o ar daquele salão. “Lágrimas são suor de almas que lutam só. Só Deus pode entender o que lhe causa dor. (…) Pare de se maltratar, não queira os outros culpar e diga: ‘por hoje não. Por hoje eu não vou mais pecar'”, cantavam eles.

Rezarei para que daqui nove meses nenhum deles esteja mais na CRIC. Que estejam reescrevendo a história. Que nasçam de novo nessa segunda gestação. E pelo trabalho que é realizado na CRIC, não serão só cidadãos limpos nossos amigos de sábado. Serão multiplicadores da receita da felicidade revelada por Deus a nós desde os 10 Mandamentos. Felizmente, daqui nove meses, teremos mais gente por aí dizendo que, embora o mundo nos faça chorar, Deus nos quer sorrindo.

***

Fé e ação

Talvez o Cenáculo de Maria do Vicariato de Canoas esteja inaugurando uma nova fase dos movimentos de jovens e adultos da Igreja Católica. Tudo começou no 140º Cenáculo de Maria do Vicariato de Canoas. Já falei dele aqui. A presença de uma dezena de jovens dependentes químicos em recuperação entre nós foi a primeira das bênçãos. A segunda, foi poder perceber como o Cenáculo atuou na ressocialização dessas pessoas. Porque quando saem dos Centros de Recuperação não é de emprego que precisam, não é de comida que precisam, não é de sexo que precisam.

Eles precisam de Deus.

E o Cenáculo de Maria, o grupo de jovens iluminados que se reúne aos sábados à tarde na paróquia Imaculada Conceição, em Canoas, este grupo está fazendo o papel de manter viva a chama da fé em nossos amigos.

Os movimentos de jovens e adultos que conheço são todos muito parecidos. Basicamente, repetem a fórmula de conversão de seu público em retiros de um final de semana. O Cenáculo também é assim. Igualmente, cumprem sua função social e cristã de forma transformadora. Já falei aqui no blog de como o CLJ mudou minha vida.

O Cenáculo parece estar indicando o amadurecimento disso tudo. É preciso avançar para águas mais profundas. Aliar a fé com obras, como esse pessoal do Cenáculo está fazendo, pra mim está sendo uma feliz e renovadora novidade.


(Artigo publicado em julho de 2010 e hoje parte integrante do livro O CLJ me enganou.)

 

Juliano RigattiSó por hoje
read more