Coisas que o Bento não verá

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Amigos e amigos que acompanham o caminho do Bento a este mundo, digo-vos que ele está perto. A contagem regressiva, aprendi, é feita em dedos de dilatação. Ele está a nove deles de mostrar-nos a força e a disposição do seu pulmão e da sua goela. Porque é como se já soubéssemos o que nos aguarda nesse mundo maluco e daí nascemos chorando, berrando. No caso do Bento, uma das razões do choro, da lástima e da tristeza também será o que ele ouviu dizerem dele esses dias, do lado de fora da barriga: pela ecografia, ele se parece com o tio! Essa o Bento não suportará. Mas o motivo das lágrimas do Bento no dia tão esperado também será a dor da mudança. Nascemos alheios à ela, nascemos inflexíveis e resistentes. Se pudéssemos escolher, continuaríamos lá, naquele útero claro e macio, recebendo de nossa mãe o alimento e o amor necessário, dormindo e acordando, com o único propósito diário de dar chutinhos e soluçar.

Mas o inflexível e resistente Bento, que chegará a capital dos gaúchos daqui nove dedos de dilatação, embora chore e esperneie, terá que se acostumar com o mundo assim mesmo como ele está – por pior que ele esteja.

Já posso ver o Bento firmando suas pernas gordas na grama verde aqui de casa e perseguindo os sabiás e as formigas pela calçada. E mais tarde, quando já puder falar o nosso bonito idioma, como o mais velho representante da nova geração dos Rigatti, também já posso vê-lo pedindo-nos para explicar o significado de coisas com as quais crescemos junto e presenciamos a sumária extinção.

Trema, hífens e acentos nunca mais estarão presentes na mesma quantidade em que nos fomos alfabetizados. O Bento terá fluência e outra língua, praticamente. E rirá dos pais e do tio quando escrevermos mega-sena, assim, com hífen, e quando ouvir nós dizermos que tivemos uma grande ideia, assim, com acento agudo.

Como explicar pro Bento a utilidade daquele pedaço de plástico onde carregávamos minúsculos 1,4 megabytes e chamávamos de disquete? E por que a avó dele não está no Orkut? Ou por que ele não encontra mais a gordura trans por mais que a procure nos rótulos das bolachas recheadas? E se ele quiser saber qual era o gosto dela, o que fazer? E se ele quiser saber como as pessoas encontrava umas as outras sem celular, que que a gente diz? E se ele perguntar se aulas de datilografia com máquina de escrever era para criar músculos nos dedos, eu nego? E se ele quiser ensinar pros amiguinhos do Twitter o passo-a-passo de como engatinhar?

Olha, sei lá. Vou mandar ele se catar e ir procurar no Google.

Juliano RigattiCoisas que o Bento não verá

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  • Ana Paula (a mãe do Bento) - 23 de março de 2009 reply

    Como sempre, sem comentários! Muito inteligente o texto…imaginei ele na grama…emocionante!

  • Mari - 24 de março de 2009 reply

    O choro do Bento também poderá ser de alegria, pois nascer neste mundo, que é repleto de indiferença e outras “coisas do mal”, tendo uma família maravilhosa e um tio babã0 como o autor deste lindo texto, não é pra qualquer um!Ele é realmente abençoado.

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