Herói morto

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Dei uma rápida passado no google antes de vir aqui para ver se descobria de onde tinha tirado essa história de herói morto. Não achei. Não lembro se foi de alguém que ouvi ou se li em algum lugar. Herói morto. Não lembro mesmo. Bom, na falta de autor e de alguém que se acuse, vamos considerar que eu, sim, eu mesmo, criei essa tal expressão. Herói morto. A história é a seguinte. 

Não tem nada de reza a lenda ou de era uma vez. É coisa nossa mesmo, do dia-a-dia. Coisa que acontece com gente simples como a gente. Sempre. Todo dia quase damos uma de herói morto. 

Agora mesmo fiz isso. Eu estava relendo o parágrafo acima, atrás de errinhos bobos de português ou de sonoridade mesmo. Pra ver se estava certo e se estava bom de ler. A última frase não está. A palavra “quase” não parece estar dizendo que quase todo dia damos uma de herói. Parece estar dizendo que todos os dias nós quase damos uma de herói. Né? Olhem pro parágrafo de novo. Deixei errado ou corrigi? Sim, permanece errado. Meu raciocínio? Ah, o leitor que faça o trabalho dele, de entender o que eu escrevo. Certo? Certo. Fico com a minha razão enquanto o texto segue sem ser compreendido. 

Sabe aquela coisa de atravessar a rua movimentada sem olhar pros lados só por que o sinal estava aberto pra ti e fechado pros carros? Fazer alguma coisa que pro teu julgamento está certo, mas pra ordem natural da vida, não está. Dois, três passos, veio o carro, derrapagem, freio, gritos, pavor, curiosos em volta. Trânsito parado. Lamentos e óóós de um lado e do outro. As calçadas se esvaziam. Multidão em volta. Está morto. Mas ele estava certo, diria um dos curiosos. É, eu também vi, ele atravessou e o sinal estava fechado. Claro que tava, diria outro indignado, fechadíssimo. Uma multidão se aglomerou em volta do rapaz. Ou podia ser uma moça, tanto faz. Velinhas chorosas já rezavam pela alma do pobre jovem. Ou da pobre jovem. Do outro lado, três senhores já esbravejavam com o fiscal de trânsito tentando-o convencer que o sinal estava mesmo fechado. Eu vi, vermelho, tava vermelho pros carros e ele passou. Eu também vi, que absurdo! O cara tava certo, seu guarda. Não, não o motorista, o morto. O morto estava certo. Certo, mas morto. 

Vamos considerar que foi numa reflexão rápida dessas, atravessando a rua dia desses, com o sinal fechado pros carros, que nasceu a história do herói morto. Pode até ser. E ela me vem quase sempre. Sempre que eu tento justificar alguma coisa que estou fazendo de errado, de moralmente errado, de legalmente errado. Alguma coisa que certamente vai me prejudicar, mas que insisto pra mim mesmo, e convenço a mim mesmo que o que estou fazendo está certo. 

É como gazear uma noite de estudos e arquitetar uma desculpa infalível pra si mesmo. Ah, hoje cheguei tarde mesmo. Ah, eu sou meio relapso assim mesmo desde pequeno, não ia ser agora que ia mudar. Ah, se o Atlético, de Ibirubá, tivesse se classificado pra final, eu estaria assistindo o jogo agora e não estaria estudando mesmo. Ah, sabe a da rua de trás? Disseram que ela ia me convidar pra sair hoje. Não acreditei quando disseram. Papo. Mas imaginem se ela tivesse mesmo me convidado pra sair. Não poderia estudar hoje. Viu só? Não vou estudar hoje, paciência.

O tempo correu, mais um dia produtivo se foi, e você, por aqui de razão, desperdiçou mais uma noite de estudo. Tá bom, você estava certo. Ninguém lhe tirará a razão. Até porque a discussão não saiu muito de você com você mesmo.

Isso é ser herói morto. Herói pra você e morto para os demais. Porque não vivemos às custas do julgamento do nosso umbigo. Vivemos em um sistema que possui regras. Senão legais, regras morais, regras que nos comprometemos a seguir sem nem mesmo saber. Mas é assim.

Ih, o e-mail aquele chegou. Solicitação de apresentação, diz o assunto. Não vou abrir. Seis e dez. Isso são horas, você se pergunta. Essa hora já era pra eu estar fechando as coisas. E se eu tivesse saído mais cedo, pergunta de novo. Nem teria visto esse e-mail. Mas você viu o e-mail chegar, diria a vozinha aquela. Aquela voz do juízo que não gosta de ver o herói morto. A noite vem, esfria o tempo, você vai pra casa, toma banho, janta, dorme até o dia amanhecer, caminha, desce, sobe, pega o ônibus, chega ao trabalho e recebe uma ligação urgente. Precisa entregar a apresentação em dez minutos. Na mesa do chefe em dez minutos. Foi solicitada ontem, em cima da hora, onde é que já se viu isso, pergunta você a você mesmo. Indignado. Herói. Herói pra você. E se não entregar a apresentação em dez minutos, não morto, mas queimado com o chefe.

Bocejei agora. O sono pegou. Cansado, o dia vai começar ouvindo minha discussão comigo mesmo. Sonolento, argumentarei dizendo que esse texto tinha que sair. Herói morto.

Juliano RigattiHerói morto

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  • Jac Oliveira - 29 de junho de 2007 reply

    não sei bem sobre o que tu escreveu agora…
    entendi, mas não o que o motivou. enfim.
    sempre escuto essa vozinha qdo chega um e-mail no fim da tarde 😛

  • luis Carlos - 29 de junho de 2007 reply

    Ajo com a razão para lidar com os demais e com a emoção para lidar com as coisas do meu coração. Sobre os heróis mortos transcrevo parte do juramento que vi no filme “Cruzadas”, sei que é piegas, mas existem alguns discursos que se retirados do contexto dos filmes são artigos emocionantes, vejam só: “Não tenha medo ao encarar seus inimigos, Seja valente e certo para que Deus te queira , Diga sempre a verdade nem que lhe custe à vida, .Proteja o indefeso e não faça nenhum mal, Esse é o teu juramento.” Devemos ser fortes para fazer o que é correto e devemos ser mais fortes para não fazer o que é errado.

  • Pietra - 29 de junho de 2007 reply

    OMG! Herói morto. Desta eu gostei. Realmente, me pego muitas vezes me dizendo “isso é errado, você sabe disso” e aquele outro lado da consciência, ou melhor, da não-consciência, que faz qualquer idéia que vier à mente retruca “que nada! Você sabe que é certo. Se é certo para você, está ótimo, então”. Aff… Discussões mentais são terríveis! Bem, já fantasiajei demais. Adorei o texto! Continue, primão! ^^
    Abraços.

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