Homens do bem

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O Dudu, meu amigo Dudu, sempre me causou admiração. Um dia, em especial, ao revelar seu belo hábito de rezar enquanto cumpre trajetos nessa nossa vida atravessando a região metropolitana de Porto Alegre. Faz um tempo isso já. Acho que fazíamos faculdade juntos ainda. Não esqueci. E sou capaz de apostar que o Dudu repete suas dezenas ainda hoje. Pede, agradece, pede de novo, agradece de novo. Ou vice-versa.

Meu amigo, esse texto é uma homenagem minha a você e a todos os outros homens do bem.

 

Homens do bem

Era ele. Igara era o meu ônibus.

Fiz sinal e subi logo depois de dar preferência a um rapaz que chegara antes na parada. Bom-dia, respondeu o motorista ao meu cumprimento.

Mais para o final da conversa dos dois, Oskar disse algo que era uma novidade. Em épocas como essa, observou ele, devia ser difícil para as igrejas continuar dizendo aos fiéis que o seu Pai do Céu se preocupava até com a morte de um mísero pardal.

Bocejei enquanto continuava a leitura da página 60 de A Lista de Schindler, de Thomas Heneally. Quase não vejo o tempo passar quando leio. Já estava além da metade do caminho de casa para o trabalho. Fazia muito frio naquela manhã de quarta-feira, 11 de junho de 2008.

Herr Schindler acrescentou que detestaria ser padre nos dias de hoje, quando uma vida tinha menos valor do que um maço de cigarros. Stern concordou, mas citou no espírito moral da discussão, que a referência bíblica de Schindler poderia ser resumida num verso talmúdico que dizia: “aquele que salva a vida de um homem salva a vida do mundo inteiro”.

– É claro, é claro – murmurou Oskar Schindler.

Com ou sem razão, Itzhak sempre acreditou que foi naquele momento que ele deixou cair a semente que germinaria no espírito de Oskar.

Talvez existam homem como Schindler, dispostos a fazer o bem, que deixem germinar dentro de si a semente da bondade. Foi o que pensei. Pelo que lembro do filme que vi há muito tempo e pelas informações da orelha do livro que ainda não terminei, Schindler foi um alemão que, durante a Segunda Guerra Mundial, arrumou um meio de salvar um número xis de judeus da horrenda morte a que os nazistas os submetia. Oskar Schindler teria sido, portanto, um homem do bem, apesar das diversidade. E bocejei outra vez.

O homem sentado ao meu lado, no banco do ônibus, não era propriamente um desconhecido. E o que me fez reconhecê-lo foi o seu estranho hábito de cochichar para ele mesmo palavras inaudíveis, ali, olhar no vidro. Tratava-se de um homem de fino trato, foi o que pude perceber com o canto do olho: calça e jaqueta escuras, sapato lustroso e pasta executiva sobre o colo. Do tipo que tira uma folha de lenço de papel para limpar o vidro do ônibus, embaçado pelo frio de seis graus que fazia na rua. Tentei continuar minha leitura, mas aquele ruído me chamava a atenção. As palavras repetiam-se uma a uma, num som abafado, que permitia apenas ter certeza que o tal senhor construía frases com o que dizia. Ele falava algo. E para alguém.

Logo em seguida, eu cochilei.

O homem terminou sua prece e repentinamente levantou-se, pondo-se de pé ao meu lado, costas dos joelhos apoiadas no banco do ônibus. Não fez menção alguma de que queria passar, apenas olhava pra cima, na diagonal. E passou a bradar versos irreconhecíveis, em alguma outra língua, e em alta voz. Como se falasse com alguém que surfava sobre o ônibus. Não que esse senhor parecesse pertencer a essa turma. Cessou em seguida. Alcançou o corredor sem ao menos pedir-me licença. Ajoelhou-se ali mesmo, entre os bancos do ônibus em movimento, e começou um ritual de reverência, joelhos no chão, braços esticados e movimentos repetidos pra cima e pra baixo. Todos observavam, nem preciso dizer, atônitos. Sem tirar os olhos da cena, o cobrador já apalpava o ar em busca do mastro prateado que sustentava a estrutura de corrimãos do veículo. O motorista, olhos esbugalhados, dividia sua atenção entre o trânsito e o retrovisor no alto do pára-brisas. No que o estranho homem pôs-se de pé mais uma vez. Abriu o sobretudo que vestia e vimos o que não desejávamos ver fora das telas do cinema: um cinturão de algo que podia ser dinamite ou algo do tipo. E luzes de duas cores piscando em confusa sintonia. Já podia ouvir choros e gritaria quando pisquei os olhos.

Acordado, pude vê-lo, o tal terrorista do meu sonho, fazendo o sinal da cruz antes de assoprar a última sílaba. Fez-me sinal para passar. Encolhi as pernas. Pisquei os olhos mais uma vez e vi que tinha dormido bastante.

Descemos na mesma parada e eu o acompanhei com o olhar. Devia ser um homem do bem. Talvez como Schindler, tinha deixado em algum momento de sua vida brotar dentro de si a semente do bem. De certo, naquele trajeto todo, rezava por alguém. Por acreditar que, sim, Deus continua a preocupar-se até com a morte de um mísero pardal. Talvez rezasse por ele mesmo inclusive. Para ser um homem melhor. Não sabemos.

Por debaixo da cobertura do ponto de ônibus vi aquele senhor desaparecer no horizonte. Mãos juntas e pasta pendurada no antebraço esquerdo, caminhava em um ritmo que me permitia supor que ele tinha iniciado a segunda parte de sua bondosa e rotineira prece matinal.

Juliano RigattiHomens do bem

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  • SIMONE HENTSCHEL LOUREIRO - 12 de junho de 2008 reply

    Nada melhor que começar a manhã de trabalho lendo um texto como este! Faz pensar, e isso as vezes a gente esquece por causa da imensa correria do dia a dia da vida de hoje….
    Abraços Simone!

  • Gustavo - 12 de junho de 2008 reply

    Perfeita definição da sociedade de hoje: ante a tantos problemas, tragédias e decepções, passamos a desconfiar de tudo e todos, vendo maldade inclusive naqueles que só querem o bem.
    Mais uma vez, belo texto, cara.
    Abração!

  • Bina - 12 de junho de 2008 reply

    Juliano!
    Hoje de manhã em minhas orações, li uma mensagem que dizia que nós temos que ser pessoas de bem… quando terminei, vim aqui no PC e li teu blog.
    Tudo se encaixou e eu acredito que o dia será muito bom hoje!
    Bjs

  • Ana Paula Rigatti Scherer - 15 de junho de 2008 reply

    Eu me lembro deste homem. Ele ainda pega o Igara?
    Rezava o tempo inteiro…

  • Dudu - 23 de junho de 2008 reply

    Nice text! Thank you for the compliments!
    Dudu.

  • Nina Flores - 25 de junho de 2008 reply

    Oi, amigo, tudo bem? Você não vai acreditar, não tenho seu mail, acabei de notar. Preciso te escrever, já deve imaginar… Aguardo, abração!

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