Leite Moça acinturada

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Outro dia, na aula, o professor comentou do sucesso do produto Leite Moça, da Nestlé. Ela havia mantido nessa montoeira de anos a figura daquela senhora (senhorita?) segurando dois baldes de leite. Um na cabeça e outro na mão direita, parte escondido atrás de uma das pernas, cobertas por um longo vestido. O nome do produto havia se consolidado no dia a dia das pessoas. Como o Bombril, o Nescau e a Maisena, de certa forma, Leite Moça era o nome pra leite condensado.

O nome já é só Moça. E a lata agora ganhou uma cinturinha. O novo formato deu ares de gostosa, de cremosa, mesmo tratando-se de uma simples lata, com um rótulo por cima. Como meu professor continuava, o Leite Moça havia chegado ao auge do seu sucesso mercadológico. Por causa da qualidade, graças ao marketing e, principalmente, por saber dar ao consumidor o que ele desejava.

No outro dia, abri o jornal, virei uma, duas páginas e a surpresa. O lançamento do Moça em frasco de protetor solar de criança, aquelas bisnagas, sabem? Ah, lembrei. E o professor também havia comentado noutro dia que, quando um produto chega ao topo da preferência, das vendas e tudo mais, cabia a ele manter esse sucesso. Porque tinha muitos outros, de outras marcas, pleiteando sua posição. Por isso, não podia descansar. E estava na minha frente, na página daquele jornal, o exemplo disso. Eu e meio mundo adorávamos (ou adoramos) lamber o resto que ficava na lata de Leite Moça depois de alguma receita feita em casa. O grande risco que eu sempre corria, lembro da minha mãe dizendo, era cortar a boca ou os dedos, porque ficavam perigosas aquelas rebarbas de lata que ficavam depois dela aberta. Estava resolvido: Leite Moça em bisnaga. Mais uma vez, ela dava ao seu consumidor o que ele queria consumir, sem que, talvez, este nem soubesse disso.

A evolução do capitalismo e as grandes crises econômicas brasileiras fizeram do Jornalismo um grande mercado também. Cada vez mais, as empresas e organizações jornalísticas estão dependentes de capital, seja ele advindo de algum tipo de receita ou, em especial, dos anúncios. O jornal, a página na internet, o programa de rádio e de TV viraram produtos. Isso, como o Leite Moça.

Precisam vender e, antes disso, precisam providenciar algumas outras coisas. Uma das grandes ações de marketing é fixar um padrão de vida ao consumidor e a outra, identificar e satisfazer suas necessidades.

A morte e o funeral do Papa lembraram um pouco isso. A repercussão do Conclave e a expectativa pela sucessão do Pontífice nunca foram cobertas pela imprensa mundial como estamos vendo agora. Não há precedentes. Nunca a mídia se fartou tanto da morte de um Papa. Há 26 anos, contam-me os mais velhos, era tudo muito diferente.

Inclusive, para o marketing editorial. Se em tecnologia, eram os homens da caverna com um microfone na mão, o estudo de recepção e tratamento do discurso midiático também evoluiu consideravelmente.

Como ouvi um senhor comentar esses dias, o Papa era um grande ícone para todos. Indiferentemente de raça, credo ou localização geográfica. A imagem de sua agonia ao tentar falar em público, poucos dias antes da morte e a própria morte mexeram muito com as pessoas. Talvez não tanto por ser um Papa, mas por ser esse grande símbolo da era da imagem.

O que fazer em termos de cobertura então? Inventar uma bisnaga de Leite Moça, com a qual os gulosos não teriam mais que se preocupar em se machucar, nem em esperar que sobrasse alguma coisa da receita de pudim. E se abrisse a lata só pra comer um pouquinho também era um problema. Como fechar depois? É, a bisnaga resolveu metade dos problemas da humanidade.

Publicar o Papa, em todos os ângulos possível e inaugurar abordagens sobre o Vaticano e o seu contexto que poucos imaginavam, mas era tudo o queriam ler nessa hora, foi a grande jogada de marketing editorial, compartilhada pela imprensa do mundo todo.

A capa do Universo On-line, respeitado pela sua parceria com a Folha On-line, permaneceu com novas sobre a morte de João Paulo II durante semanas, dias após dias. O renomado jornalista Ricardo Noblat, conhecido pelo seu blog de cobertura política, escreveu cerca de 45 páginas (de Word, fonte 12) sobre o fato, durante o final de semana do acontecido.

Capas de jornais do mundo inteiro, inclusive não-cristãos, davam a morte do Papa como fato principal e transformador da sociedade de todas as culturas. Programas de entrevista, documentários, edições especiais de revistas semanais, todos. Nossa vida não seria mais a mesma. Tudo sobre o futuro da Igreja Católica, sua progressividade, liberalidade ou conservadorismo. Tudo sobre todos os cardeais candidatos, suas crenças e favoritismos.

Durante dias a fio, um novo padrão de vida para a sociedade: acompanhar a morte do Papa. E, para isso, identificar, gerar e transmitir informações que satisfizessem a necessidade desse público em saber sempre mais sobre o assunto.

O Jornalismo havia criado não só a latinha de Leite Moça acinturada, mas o Leite Moça em bisnaga. Pronto para consumir, na hora que quisesse, na quantidade que desejasse. E, melhor, sem engordar.

Juliano RigattiLeite Moça acinturada

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  • Franco - 18 de abril de 2005 reply

    Juliano, isso me lembra o episódio da mudança do local do jogo da final do Gauchão. A imprensa “noticiou” que o Inter queria mudar o local do jogo, faturou uma semana de polêmica e notícia em cima deste fato.
    E depois finalmente deu voz ao presidente do Inter que declarou nunca ter sugerido a mudança …
    (acho que ganharam mais uma semana aí :D) …
    Tudo no intuito de criar expectativas, achar o novo leite moça …
    Existe uma “linhazinha” entre ser comercial e ser especulatório …
    Esse caso do Papa .. não sei não …

    Com a palavra: vc que é jornalista e entende melhor do que eu !

    Abração … os textos estão ótimos …

  • Franco - 18 de abril de 2005 reply

    Juliano, isso me lembra o episódio da mudança do local do jogo da final do Gauchão. A imprensa “noticiou” que o Inter queria mudar o local do jogo, faturou uma semana de polêmica e notícia em cima deste fato.
    E depois finalmente deu voz ao presidente do Inter que declarou nunca ter sugerido a mudança …
    (acho que ganharam mais uma semana aí :D) …
    Tudo no intuito de criar expectativas, achar o novo leite moça …
    Existe uma “linhazinha” entre ser comercial e ser especulatório …
    Esse caso do Papa .. não sei não …

    Com a palavra: vc que é jornalista e entende melhor do que eu !

    Abração … os textos estão ótimos …

  • Juliano Filipe Rigatti - 18 de abril de 2005 reply

    É vero. É que o que eu penso é que sempre a questão comercial prevalece. Se não tão aparente, pelo menos lá no fundionho da história. Entendo o que vc quer dizer com “especulatório”. Neste caso, digo que as emissoras de rádio AM de Porto Alegre sobrevivem com o futebol. Neste caso, como não colocar no ar uma Moça acinturada? Gol e polêmica alimentam os boleiros de plantão.

    Legal a discussão. Valeu pelo retorno!

    Abraço.

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