Pais, leiam isso!

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Maravilhosamente
Por Fabrício Carpinejar

Vicente gosta de jogar futebol. Vicente gosta de jogar cartas de Supertrunfo. Vicente gosta de cavar a terra com pá e galochas. Vicente gosta de colecionar figurinhas. Vicente gosta de desenhar deitado no tapete. Vicente gosta de ajudar a mãe na cozinha. Vicente gosta de ir ao cinema e comer pipoca para acumular pontos. Vicente gosta de escolher sua roupa e colocar a camisa nova por cima de uma velha. Vicente gosta de jogar farelos para as pombas antes de chegar à escola. Vicente gosta de cortar os cabelos de seus bonecos. Vicente gosta de receber camisetas de times. Vicente gosta de tornear esculturas de argila. Vicente gosta de jogar videogame. Viente gosta de classificar restaurantes. Vicente gosta de dormir no carro. Vicente gosta de tirar fotografias. Vicente gosta de limpar os farelos dos salgadinhos nas calças. Vicente gosta de freqüentar o estádio. Vicente gosta de comer sorvete contornando as beiradas. Vicente gosta da sexta-feira.

Entre tantos gostos, o que meu filho mais gosta?

Observava o guri no final de semana. Com respeito. Como se fosse o pé direito de um quarto. Ele não parava quieto. Sua felicidade no final de semana é narração. Aponta e fala. Fala o que aponta.

Posso estar enganado, mas o que meu filho realmente gosta é de conversar.

Quando não cancelamos os ouvidos para forçá-lo a se ocupar com suas coisas. Não o empurramos ao seu canto e para seus brinquedos. Não o diminuímos diante de nossas leituras e afazeres miúdos.

O que fará uma criança crescer confiante é o tempo que dedicamos para escutá-la. É o tempo que propomos perguntas e a continuidade do raciocínio. O tempo em que legitimamos suas descobertas. O tempo em que não suspendemos sua curiosidade com elogios vadios: que bonito!, ótimo!, é isso mesmo!. Exclamações que pretendem enterrar o assunto e nos liberar para nossas atividades.

Ele se verá importante se eu valorizar o que ele escolhe para dizer, seus rascunhos e vacilações, seu modo de se organizar. Não é enchendo de mimos e presentes. Não é numa semana hiperativa, com passeios emendados e a adrenalina das surpresas. Toda criança tem um acesso estreito de sua imaginação para os pais. Deixará aberto se for usado. É tabuada: nenhuma criança dorme com a porta fechada, por que fechá-la durante o dia?

O autismo vem no momento em que a solidão é maior do que nossa capacidade de explicá-la.

Numa manhã e tarde modorrenta, com chuva intensa, trancados na residência, faltou luz. Escureceu dentro e fora. Acendemos velas e ficamos ao redor de uma mesa, brincando de adivinhar vultos, gesticulando fantoches nas paredes. A cera derretendo dá vontade de pescar sombras. De minha parte, conversava para matar o tempo e espantar o período de exceção. Reagia mais ao tédio do que à vida (mas é somente no tédio que suspiro). Restava a certeza de que era o pior dia do Vicente. Ele não fez nada do que admirava. Não brincou, não alisou o pó de seus carrinhos, não circulou pelo terraço.

Ao cabo da noite, ao apressar as cobertas e a virada do calendário, me confessou que nunca tinha sido tão feliz. Como? Sim, o óbvio é o imprevisível; por um momento contou com a audição de meus cílios. Maravilhosamente, eu olhei o que ouvia, não ouvia como quem olha. Sem querer, não descolamos um minuto da respiração. Um poderia embaçar o rosto do outro, tamanha a proximidade.

Meu filho procura entender o mundo. Posso ajudá-lo. Talvez ele tenha mais chance do que eu.

Juliano RigattiPais, leiam isso!

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