Pise na grama

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É uma visão da infância a esquina aqui perto de casa onde jogávamos bola de manhã e de tarde, todo o santo dia. A calçada era de pedra de basalto e era delimitada pelo portão eletrônico do Ilha de Itaparica, o prédio imponente que tinha a frente pra rua Dom Pedro II.

Bom, o fato é que pra dobrar a esquina quando tinha que buscar a bola ou mesmo pra ir buscar pão na padaria tinha que desviar de um pedaço de grama que eu sempre achei que tinha sido plantado por alguém que nunca tinha passado ali a pé. Não, porque não tinha razão daquele pedaço de calçada ser de grama, não tinha. Pra evitar a grama, pra não pisar nela, tinha que fazer o contorno, uns três passos a mais, contando meio por cima. Sim, porque quando se é criança, um dia é mais longo que um dia de adulto, um ano é maior que um ano de adulto e, lógico, os trajetos são mais compridos também. E três passos fazem diferença.

O fato é que eu nunca pisava na grama. Nunca. Contornava o canteiro e seguia meu caminho. Pra buscar a bola ou o pão. Pisar na grama era transgredir, era desobedecer a uma ordem social imposta por não sei quem. O correto era passar pela calçada. Ou pela rua. Mas não pela grama.


O tempo passou. Os dias ficaram mais curtos, os anos voam (já é 2007?) e falar em um ou dois passou a mais parece uma incrível bobagem. Mas o fato é que a lembrança de não pisar na grama e respeitar o caminho sempre percorrido me veio esses dias, meio sem querer. Estava pensando justamente sobre isso: sobre fazer as coisas porque sempre foram feitas assim. Desviar da grama, caminhar pela calçada.


Pise na grama. E com gosto. É como que se todos tivéssemos que desrespeitar essa regra durante a vida, passando a pisar em gramas por aí. Desviar do caminho tradicional e pisotear com gosto aquele outro nunca antes experimentado. Pisar na grama é considerar a outra possibilidade. Muitas vezes a possibilidade vencedora, alegre, gratificante, pacífica. Tens uma palestra pra dar? Uma reunião pra conduzir? Uma viagem? O encontro aquele? A possibilidade do fracasso e da cena do detalhe dando errado é quase que automática. Muitas vezes é inconcebível que passemos com sucesso e satisfação por um instante de provação ou de risco. E por quê? Porque não nos damos o direito de pisar na grama.


Tudo o que vemos ou vislumbramos para nossa vida é, num primeiro instante, desenhado dentro da nossa cabeça. E a nós é dada, a todo momento, a chance de tomar o lápis e rabiscar a realidade. Isso é provado, é comprovado, é ciência.


Não sei se já disse aqui, mas o documentário “Quem somos nós?” é categórico nessa questão. Com sensores ligados ao cérebro, um rapaz é colocado em frente a uma cesta de frutas. Com fome, algumas regiões do seu cérebro reagem e o monitor que acompanha o teste mostra as áreas da massa cinzenta que se iluminam. Em seguida, a cesta de frutas é tirada dali, o rapaz fecha os olhos e é sugestionado a imaginar as mesmas frutas. Na tela do aparelho medidor, a mesma imagem: o cérebro iluminado nas mesmas regiões.


Pisar na grama é desrespeitar aquela regra que nos acostumamos. Pisar na grama é desordenar o destino da próxima cena da vida e sugestionar ao acaso o que queremos que ele nos traga. Pisar na grama é considerar que a calçada ou o meio da rua não são as únicas possibilidades.


Se estás lendo isso aqui de dia, pise na grama para o próximo desafio do seu dia. Aquele que te deixa apreensivo por causa do seu grau de risco. Não dê chance para o insucesso. Apague ele do desenho que estás fazendo. Se já é noite, acorde e pise na grama. Ao contrário do dia estressante que passou, amanhã tudo estará em paz. Se é assim que queres com todas as forças, é exatamente assim que será.


Não considere somente a possibilidade de sempre. Considere a chance de ser feliz. Considere a chance de aquele momento te trazer mais gratificação do que nervosismo.


Anos depois, já não jogava mais bola todo dia, mas a calçada e a grama continuavam lá, à sombra do Ilha de Itaparica. No lugar da grama aquela, vejam só: uma nova calçada. Uma calçada cruzando a esquina, desenhando exatamente o caminho que eu sempre me perguntava por que não podia existir. Outros pisaram na grama, e pisaram tanto que alguém resolveu trocar o barro que tava surgindo por pedras de basalto.


O inconcebível e o impensável só não existem porque ainda não foram considerados concebíveis e plausíveis. Pise na grama. Construa calçadas onde hoje há grama. Edifique novos caminhos, novas possibilidades.


“Ele não sabia que era impossível. Foi lá e fez.”

Jean Cocteau

(Ótima foto: Jacqueline Oliveira)

Juliano RigattiPise na grama

6 comments

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  • Jac Oliveira - 18 de junho de 2007 reply

    Eu já nasci pisando na grama. Desarrumando uma porção de jardins por aí… construindo novas trilhas simplesmente por falta de opção.
    Achei teu texto otimista. Em alguns momentos, até demais para mim. Mas, ainda bem que existem pessoas como tu.
    beijos

  • Jac Oliveira - 18 de junho de 2007 reply

    Ah, e que foto legal! 😛 hehehe
    acessem meu flickr pessoas: http://www.flickr.com/photos/jacoliveira

  • Ana Paula Rigatti Scherer - 18 de junho de 2007 reply

    Acho que para se conseguir algo nesta vida, só pisando na grama. Viver pacificamente esperando que outros pisem, nos leva a viver no marasmo, nunca errando, mas também, nunca se revelando… Acho que vivo esse momento. Tuas palavras me ajudaram… Pensei em contornar a calçada, mas acho que vou pisar na grama. Vou sujar meu pé…mas vou atravessar para o outro lado!

  • Luis Carlos - 18 de junho de 2007 reply

    Se pisarmos sempre nos lugares seguros e iluminados por onde as pessoas de outrora deixaram suas marcas e demarcaram o caminho para os que posteriormente chegassem , chegassem são e salvos, certamente chegaremos até onde estes chegaram, sem termos tido experiências frustrantes, estonteantes, ou tão somente experiências, mas ainda assim seriam experiências. Temos que ter experiências , mas acima de tudo temos que sobreviver às mesmas para que estas sirvam de conteúdo para nossa formação e para os que não teimam em experimentar.

  • Jac Oliveira - 19 de junho de 2007 reply

    agora sim, tá louco de especial. Um dia depois, mas tu ainda chega à perfeição 😀
    :*

  • Os números de 2010 | Uzina - 3 de janeiro de 2011 reply

    […] Pise na grama junho, 20075 comentários […]

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