Só por hoje

9 comments

Há uma camiseta de tecido claro estendida no chão da entrada do salão do Centro de Recuperação Imaculada Conceição, em Gravataí, no Rio Grande do Sul. Ela é pisada por todos os que entram no local, rapazes dependentes químicos, seus monitores e visitantes. Molhada e completamente tomada por uma fina areia marrom, poucos se dão conta da sua presença. Embora ela tivesse sua função, com a umidade e a chuva do último sábado, seria inútil qualquer tentativa de manter o salão seco e limpo. Mas ela permaneceu ali, imunda, durante todo o dia, enquanto rezávamos, partilhávamos experiências de vida e plantávamos esperança no coração de 38 adictos em recuperação.

Já era escuro, meus olhos inchados e embaçados de emoção, quando reparei a primeira vez na tal camiseta, enrolada no piso frio e escorregadio por onde passávamos. Alguns se despediam, prometendo voltar, outros, agradeciam pelo dia e, sem dizer, nos revelavam, pelo brilho do olhar, que aquele era, mais uma vez, o primeiro dia de suas vidas.

A camiseta suja serviu de metáfora do que vivemos no 1º Retiro do Movimento Cenáculo de Maria na CRIC, casa que acolhe cidadãos que desejam limpar seu organismo e libertar sua alma das drogas. Chegam ali como aquela camiseta, tomados pela sujeira da falta de dignidade, desprezados por uma sociedade avessa aos valores cristãos e com quase nenhuma esperança. Muitos deles, conhecendo a pobreza e a dificuldade, fizeram da droga uma tentativa de fuga da realidade. Outros, como o rapaz que nos deu seu depoimento e com quem conversei, ascenderam financeiramente e despencaram ao fundo do poço. Restaram alguns reais para pagar a triagem e cobrir os custos mensais com o Centro. “Tinha uma esposa, um filho, abri um negócio próprio, cheguei a ter 15 funcionários, e perdi tudo”, contou-me. A decisão pela recuperação veio dentro de um motel, enquanto consumia, sozinho, a última quantidade de cocaína que levava nos bolsos. “Olhava para os espelhos e não me via. Tive tudo, mas faltava-me Deus”, concluiu.

A CRIC é apadrinhada pela paróquia Imaculada Conceição, da Igreja Católica, localizada no bairro Rio Branco, em Canoas. O movimento Cenáculo de Maria, da mesma paróquia, do qual participo, foi quem idealizou o retiro. A ligação do Cenáculo com as drogas já contei aqui. Graças a isso, tínhamos também entre nós, no sábado, cenantes que livraram-se da dependência química e hoje visitam a CRIC pra testemunhar que há, sim, dias iluminados fora do túnel do vício. “Eu nunca vi eles tão felizes, cara, nunca. E pra mim, que já estive aqui, então, isso está sendo maravilhoso”, ouvi de um deles.

Durante os nove meses de tratamento na CRIC, os jovens e adultos em recuperação estudam a Bíblia, trabalham na horta, na ordenha dos animais, na manutenção da estrutura e na preparação das refeições. De todas, a tarefa mais exigente, certamente, é olhar pra si próprio. “Acordo todos os dias e tenho que me encarar, admitir que fiz tudo errado e recomeçar”, disse um dos residentes, que já está no Centro pela segunda vez, depois de ter ido embora e recaído na primeira tentativa.

Sempre que tive oportunidade, parabenizei uma daquelas pessoas pela coragem. Não é fácil tomar a decisão de ir até a fazenda. Menos fácil é dizer para si, a cada manhã, só por hoje não vou mais pecar. Porque lá, eles vivem um dia de cada vez. Como nós vivemos, sem nos dar conta. Para emagrecer, para passar no concurso, para construir uma carreira bem-sucedida. Cada uma dessas conquistas, como para largar o vício, requer coragem de viver um dia de cada vez. Mas mais vital do que qualquer objetivo que tenhamos aqui fora, lá na CRIC só o que eles querem é merecer suas vidas de volta. E como querem.

Bem no início do dia que passamos juntos, sentei-me num dos primeiros bancos do salão, depois de uma das primeiras palestras, e ouvi-os cantar junto conosco. Mas não cantei. Porque não pude. Era forte e bonito demais ouvir a voz de cada um deles transformada em uma só, preenchendo o ar daquele salão. “Lágrimas são suor de almas que lutam só. Só Deus pode entender o que lhe causa dor. (…) Pare de se maltratar, não queira os outros culpar e diga: ‘por hoje não. Por hoje eu não vou mais pecar'”, cantavam eles.

Rezarei para que daqui nove meses nenhum deles esteja mais na CRIC. Que estejam reescrevendo a história. Que nasçam de novo nessa segunda gestação. E pelo trabalho que é realizado na CRIC, não serão só cidadãos limpos nossos amigos de sábado. Serão multiplicadores da receita da felicidade revelada por Deus a nós desde os 10 Mandamentos. Felizmente, daqui nove meses, teremos mais gente por aí dizendo que, embora o mundo nos faça chorar, Deus nos quer sorrindo.

***

Fé e ação

Talvez o Cenáculo de Maria do Vicariato de Canoas esteja inaugurando uma nova fase dos movimentos de jovens e adultos da Igreja Católica. Tudo começou no 140º Cenáculo de Maria do Vicariato de Canoas. Já falei dele aqui. A presença de uma dezena de jovens dependentes químicos em recuperação entre nós foi a primeira das bênçãos. A segunda, foi poder perceber como o Cenáculo atuou na ressocialização dessas pessoas. Porque quando saem dos Centros de Recuperação não é de emprego que precisam, não é de comida que precisam, não é de sexo que precisam.

Eles precisam de Deus.

E o Cenáculo de Maria, o grupo de jovens iluminados que se reúne aos sábados à tarde na paróquia Imaculada Conceição, em Canoas, este grupo está fazendo o papel de manter viva a chama da fé em nossos amigos.

Os movimentos de jovens e adultos que conheço são todos muito parecidos. Basicamente, repetem a fórmula de conversão de seu público em retiros de um final de semana. O Cenáculo também é assim. Igualmente, cumprem sua função social e cristã de forma transformadora. Já falei aqui no blog de como o CLJ mudou minha vida.

O Cenáculo parece estar indicando o amadurecimento disso tudo. É preciso avançar para águas mais profundas. Aliar a fé com obras, como esse pessoal do Cenáculo está fazendo, pra mim está sendo uma feliz e renovadora novidade.


(Artigo publicado em julho de 2010 e hoje parte integrante do livro O CLJ me enganou.)

 

Juliano RigattiSó por hoje

Related Posts

9 comments

Join the conversation
  • Cassiano Lima 137º MCMIC - 27 de julho de 2010 reply

    Ola estou aqui na fazenda e vendo a felicidade dos meninos, eles falam do sábado maravilhoso que tiveram, que trouxe resposta para a nova vida que eles vão ter la fora, o brilho nos olhos deles o carinho deles, agora por exemplo eles estão no estudo bíblico cantando louvores com uma alegria, é maravilhoso conhecer esses meninos e poder ajudar eles.

  • Henrique Girardi - 27 de julho de 2010 reply

    O que todos nós (cenantes e residentes da CRIC) passamos nesse retiro foi simplesmente mais uma prova de como Deus pode ser bom e quer nossa felicidade. Cenantes que foram servir e passar a palavra de Deus pelos 10 mandamentos aprenderam e viveram mais próximos de problemas que a vida cria para muitos dos nossos irmãos, fazendo-nos abrir os olhos para uma realidade antes nunca vista por muitos de nós. Para os residentes da CRIC, uma oportunidade de poder viver um dia com novas pessoas, e agora novos amigos, pois quando voltarmos lá novamente, tenho certeza que as inseguraças que eles tinham no início do dia não existirá mais. Assim como eles, eu tbm aprendi que se o mundo nos faz chorar, Deus nos quer sorrindo!

  • EDUARDO DELAZERI - 27 de julho de 2010 reply

    Bah
    Gostei tanto que vou copiar o seu artigo no meu site – eradomilagre.com.
    Salve Maria

  • Cássio Mendonça - 27 de julho de 2010 reply

    Depois de 15 anos como membro do Cenáculo de Maria, pela primeira vez consigo ver o movimento engajado em algo concreto, porque tocar violão em asilos, levar ranchos para orfanatos é importante sem sombra de dúvidas, mas não é como o que está acontecendo no momento…darmos as mãos para pessoas que a sociedade finge não existir…Louvado seja nosso Deus, que nos permite cada dia mais vivenciar esta nova fase do Movimento!

  • Beatriz Schuster - 2 de agosto de 2010 reply

    A contextualização com a camiseta na entrada para limpar os pés…leva-me a reflexão pessoal das nossas ações diárias …
    Urge reconhecermos que somos Filhos de Deus… olhar e SENTIR o outro como irmão…
    A sociedade finge não ver…quantos talentos perdidos…os jornais diariamente trazem perdas trágicas de jovens…
    Só por HOJE …

    uzina - 26 de agosto de 2010 reply

    Que bonito, Bia. É isso. Precisamos valorizar mais as coisas de Deus, a começar pela vida.

    Beijo grande, Juliano Rigatti

  • Celso - 8 de agosto de 2010 reply

    Juliano:

    Também aqui convivemos com essa luta.
    Só perseverando!

    Celso.

  • pietracr - 17 de setembro de 2010 reply

    “Por hoje eu não vou mais pecaaar
    Estenda a suuua mão
    E abra o seeeu coração
    Volta pro seu Senhor
    E se abra à restauraçããão!
    Com Cristo, você vai superaar
    Todas as barreiras passar
    Todo o pecado vencer
    E um novo homem vaaaai nasceeeeer!”
    Eu ‘tava cantando isso no meu retiro. Me fez chorar aqui, primo. Ç__Ç É um baita trabalho esse, e posso apostar como vai ficar marcado pra vida inteira deles. São almas que estão salvas agora. (: Não acredito que eles façam algo sem lembrar desse retiro. Marca muito. E se torna como um anjinho martelando na tua cabeça e chamando tua atenção: “Você não aprendeu isso no retiro, você não prometeu isso no retiro.” São ensinamentos pra vida toda, é a carga da consciência mais bonita que existe. ^^ Não deixemos que isso morra! o/ E eu digo parabéns. (:
    Saudades, primo. Me espere em dezembro.
    Beijos e abraços.

    uzina - 17 de setembro de 2010 reply

    Prima, onde tu aprendeu tudo isso. Ah, sim, é inspiração do Espírito Santo. Só pode. Lindo. Deus te ouça. E digo isso com a sinceridade que acho que nunca disse antes. Deus te ouça. Ah, liga na Rádio Aliança, pela internet, às segundas, das 21h30 às 23h. Vais gostar. Até dezembro!

Deixe uma resposta para pietracr Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *