Somos todos cegos

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Entardece em Porto Alegre. Há uma pessoa caída no meio da rua. No ainda movimentado centro da cidade.

Homem, adulto, vestido, com um dos braços esticado por cima do rosto, que está de costas pra mim e virado para o cordão da calçada.

O que teria acontecido?

Um atropelamento? Não, não havia gente ao redor, curiosos aglomerados. Seria um mendigo que, fora de si e sem os jornais, decidira passar a noite ali mesmo?

Ou um bêbado que não aguentara o peso das pernas e desabara? Um brigadiano, cinco dedos ao alto e à vista dos carros que vinham pela avenida, atravessou a rua em direção ao tal homem. “Ei, cara!”, gritou, já abaixado, tocando-o. Pude ver sua arma e a sua expressão. Era um misto de preocupação e repreensão.

Foi só o que vi.

Eu passava de carro. Enquanto dirigia para casa, fiquei procurando razões para aquele cara estar ali. Não pude encontrar respostas.

***

Minutos antes, terminava mais uma sessão do excelente Ensaio sobre a cegueira, do brasileiro Fernando Meirelles, numa das salas de cinema da Casa de Cultura Mário Quintana, na capital. Eu estava lá. Em desvantagem aos demais, mas estava lá. Explico: tinha acabado de deixar meus óculos no conserto. Não planejei, mas meu irônico destino pôs-me míope sentadito naquela poltrona de cinema para assistir a história de uma cidade cuja população é acometida por uma cegueira total e inexplicável. Claro que a dificuldade de focar as letrinhas miúdas (e por que amarelas, meu Deus do céu?) me fez perder algumas legendas. Mas posso dizer que minha pequena deficiência ajudou a deixar a fotografia do longa ainda mais densa e chocante. Porque há cenas que são mesmo chocantes no filme.

Julianne Moore, a única personagem que passa o filme todo enxergando, aparece na última cena se dizendo cega. Cega, embora pudesse ver. Cega, embora pudesse perceber cada palmo à frente do seu nariz. Cega, embora pudesse reconhecer cada um. A afirmação de Moore mexeu comigo.

Feche os olhos você e experimente andar por aí. Se o fizesse pra valer, o que veria? Nada? Tudo escuro? Bobagem. Deixamos de ver muita coisa enquanto vivemos com os olhos bem abertos todos os dias.

Isso mesmo. Se deixamos de ver é porque somos todos cegos. Acho que foi isso que quis propor José Saramago quando escreveu o livro que deu origem ao filme. Todos cegos. Ao tirar a visão de todos os personagens, a história evidencia o que há de vital entre os seres humanos. E cujo valor ignoramos solenemente. Podia listar aqui uma porção dessas coisas.

Você, o que será que deixa de ver todos os dias?

***

Um cego, nem que se esforce, verá. Não há estrutura física e neurológica para que tal fenômeno se concretize. Ele não vê e pronto. E passa a levar a vida com base no que percebe ao seu redor.

E nós, baseamos nossa expectativa de felicidade, nossa idéia de valor, naquilo que vemos, que reconhecemos. Não temos outra alternativa senão esta. Isso pode ser uma explicação para o caos no qual vivemos. Mas não pode ser uma justificativa.

O que acho é que sempre podemos ver mais, ver além, ver no detalhe, ver o outro lado. Sempre. Aquelas tais milhares de possibilidades que cruzam nossa visão a todo instante. Elas podem ser vistas. Desde que queiramos.

Quantas vezes você só enxergou a luz da lâmpada depois que a eletricidade se foi e quantas vezes alguém só amou quem estava ao lado depois de uma tragédia? Você caminha pelo centro da cidade e vê vitrines, mas não vê o mendigo. Você reclama que o motoboy corre, que corta o seu caminho, mas continua exigindo pressa quando pede uma entrega. Você anda de carro pela cidade e não entende porquê há uma pessoa caída no meio da rua. Homem, adulto, vestido, com um dos braços esticado por cima do rosto, que está de costas pra você e virado para o cordão da caçada.

O que teria acontecido?

Pode ser um mendigo, um bêbado. Alguém que perdeu a razão porque perdeu a casa, perdeu a mulher, perdeu a saúde. Um insano que, porque perdeu o emprego, não pode comer, não pode comprar, não pode viajar. Alguém que perdeu a honra, a dignidade, o respeito. Pode ser que seja um deles, não? Tem possibilidades como essas que simplesmente não reconhecemos, não enxergamos e pronto.

Quando a luz da sala de cinema acendeu-se, não era só a miopia que me incomodava. Estava cego.

Juliano RigattiSomos todos cegos
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