Só por hoje

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Há uma camiseta de tecido claro estendida no chão da entrada do salão do Centro de Recuperação Imaculada Conceição, em Gravataí, no Rio Grande do Sul. Ela é pisada por todos os que entram no local, rapazes dependentes químicos, seus monitores e visitantes. Molhada e completamente tomada por uma fina areia marrom, poucos se dão conta da sua presença. Embora ela tivesse sua função, com a umidade e a chuva do último sábado, seria inútil qualquer tentativa de manter o salão seco e limpo. Mas ela permaneceu ali, imunda, durante todo o dia, enquanto rezávamos, partilhávamos experiências de vida e plantávamos esperança no coração de 38 adictos em recuperação.

Já era escuro, meus olhos inchados e embaçados de emoção, quando reparei a primeira vez na tal camiseta, enrolada no piso frio e escorregadio por onde passávamos. Alguns se despediam, prometendo voltar, outros, agradeciam pelo dia e, sem dizer, nos revelavam, pelo brilho do olhar, que aquele era, mais uma vez, o primeiro dia de suas vidas.

A camiseta suja serviu de metáfora do que vivemos no 1º Retiro do Movimento Cenáculo de Maria na CRIC, casa que acolhe cidadãos que desejam limpar seu organismo e libertar sua alma das drogas. Chegam ali como aquela camiseta, tomados pela sujeira da falta de dignidade, desprezados por uma sociedade avessa aos valores cristãos e com quase nenhuma esperança. Muitos deles, conhecendo a pobreza e a dificuldade, fizeram da droga uma tentativa de fuga da realidade. Outros, como o rapaz que nos deu seu depoimento e com quem conversei, ascenderam financeiramente e despencaram ao fundo do poço. Restaram alguns reais para pagar a triagem e cobrir os custos mensais com o Centro. “Tinha uma esposa, um filho, abri um negócio próprio, cheguei a ter 15 funcionários, e perdi tudo”, contou-me. A decisão pela recuperação veio dentro de um motel, enquanto consumia, sozinho, a última quantidade de cocaína que levava nos bolsos. “Olhava para os espelhos e não me via. Tive tudo, mas faltava-me Deus”, concluiu.

A CRIC é apadrinhada pela paróquia Imaculada Conceição, da Igreja Católica, localizada no bairro Rio Branco, em Canoas. O movimento Cenáculo de Maria, da mesma paróquia, do qual participo, foi quem idealizou o retiro. A ligação do Cenáculo com as drogas já contei aqui. Graças a isso, tínhamos também entre nós, no sábado, cenantes que livraram-se da dependência química e hoje visitam a CRIC pra testemunhar que há, sim, dias iluminados fora do túnel do vício. “Eu nunca vi eles tão felizes, cara, nunca. E pra mim, que já estive aqui, então, isso está sendo maravilhoso”, ouvi de um deles.

Durante os nove meses de tratamento na CRIC, os jovens e adultos em recuperação estudam a Bíblia, trabalham na horta, na ordenha dos animais, na manutenção da estrutura e na preparação das refeições. De todas, a tarefa mais exigente, certamente, é olhar pra si próprio. “Acordo todos os dias e tenho que me encarar, admitir que fiz tudo errado e recomeçar”, disse um dos residentes, que já está no Centro pela segunda vez, depois de ter ido embora e recaído na primeira tentativa.

Sempre que tive oportunidade, parabenizei uma daquelas pessoas pela coragem. Não é fácil tomar a decisão de ir até a fazenda. Menos fácil é dizer para si, a cada manhã, só por hoje não vou mais pecar. Porque lá, eles vivem um dia de cada vez. Como nós vivemos, sem nos dar conta. Para emagrecer, para passar no concurso, para construir uma carreira bem-sucedida. Cada uma dessas conquistas, como para largar o vício, requer coragem de viver um dia de cada vez. Mas mais vital do que qualquer objetivo que tenhamos aqui fora, lá na CRIC só o que eles querem é merecer suas vidas de volta. E como querem.

Bem no início do dia que passamos juntos, sentei-me num dos primeiros bancos do salão, depois de uma das primeiras palestras, e ouvi-os cantar junto conosco. Mas não cantei. Porque não pude. Era forte e bonito demais ouvir a voz de cada um deles transformada em uma só, preenchendo o ar daquele salão. “Lágrimas são suor de almas que lutam só. Só Deus pode entender o que lhe causa dor. (…) Pare de se maltratar, não queira os outros culpar e diga: ‘por hoje não. Por hoje eu não vou mais pecar'”, cantavam eles.

Rezarei para que daqui nove meses nenhum deles esteja mais na CRIC. Que estejam reescrevendo a história. Que nasçam de novo nessa segunda gestação. E pelo trabalho que é realizado na CRIC, não serão só cidadãos limpos nossos amigos de sábado. Serão multiplicadores da receita da felicidade revelada por Deus a nós desde os 10 Mandamentos. Felizmente, daqui nove meses, teremos mais gente por aí dizendo que, embora o mundo nos faça chorar, Deus nos quer sorrindo.

***

Fé e ação

Talvez o Cenáculo de Maria do Vicariato de Canoas esteja inaugurando uma nova fase dos movimentos de jovens e adultos da Igreja Católica. Tudo começou no 140º Cenáculo de Maria do Vicariato de Canoas. Já falei dele aqui. A presença de uma dezena de jovens dependentes químicos em recuperação entre nós foi a primeira das bênçãos. A segunda, foi poder perceber como o Cenáculo atuou na ressocialização dessas pessoas. Porque quando saem dos Centros de Recuperação não é de emprego que precisam, não é de comida que precisam, não é de sexo que precisam.

Eles precisam de Deus.

E o Cenáculo de Maria, o grupo de jovens iluminados que se reúne aos sábados à tarde na paróquia Imaculada Conceição, em Canoas, este grupo está fazendo o papel de manter viva a chama da fé em nossos amigos.

Os movimentos de jovens e adultos que conheço são todos muito parecidos. Basicamente, repetem a fórmula de conversão de seu público em retiros de um final de semana. O Cenáculo também é assim. Igualmente, cumprem sua função social e cristã de forma transformadora. Já falei aqui no blog de como o CLJ mudou minha vida.

O Cenáculo parece estar indicando o amadurecimento disso tudo. É preciso avançar para águas mais profundas. Aliar a fé com obras, como esse pessoal do Cenáculo está fazendo, pra mim está sendo uma feliz e renovadora novidade.


(Artigo publicado em julho de 2010 e hoje parte integrante do livro O CLJ me enganou.)

 

Juliano RigattiSó por hoje
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A lucidez do Bento

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Eu vejo divindade nos bebês. Especialmente no meu afilhado Bento, que acaba de completar um ano entre a gente. Desde antes do seu nascimento, falei muito do Bento aqui. Mas nunca disse o quanto admiro a sua lucidez, a sua divindade.

E a divindade do Bento me fez entender que quanto mais crescemos, mais precisamos redescobrir a divindade que está escondida dentro de nós. Divindade esta que, para ser bem ecumênico e atingir a todos, pode ser entendida por alegria de viver, entendimento do nosso universo ou coisa que o valha.

Fica observando um bebê com seu pouco mais – ou pouco menos – de um ano de vida. Observa. Todos os seus hábitos, suas reações e manifestações são incompreensíveis pra nós. Como se eles se relacionassem com a vida e com seus elementos essenciais de um jeito particular. Como se vivessem indiferentes aos nossos padrões de existência. Muitos até chamam isso de inocência.

Observa.

Uma colher não é uma colher como são para nós, adultos, as colheres. É mais. É alguma coisa especial, grande, com curvas engraçadas, que brilha e emite sons divertidos quando batida na mesa ou jogada no chão.

Você chama um bebê e ele não atende. Mas quando você o esquece, ele fixa o olhar em você como se você fosse muito diferente dos demais.

Você faz as suas palhaçadas, tapa e destapa o rosto, planta bananeira e nada detém a atenção do bebê. Mas quando a mãe ou a avó batem palma bem de longe, lá de longe, seu sorriso se enche de gengivas.

A mamãe quer dar-lhe de comer e ele recusa. Recusa porque viu algo de novo em algum lugar da varanda. Algo que merece toda sua energia naquele momento. Ele age como se cada momento fosse nunca mais voltar. Sábio ele, hem?

Sem os nossos vícios de adultos, os bebês gargalham e apontam para os passarinhos. Espantam-se e balbuciam sons sem sentido. Contemplam as flores por meses e meses até crescerem, receberem nossa influência e passarem a preferir os shopping centers e os smartphones. Sem a nossa desconfiança, os pequenos admiram-se com um conjunto de lápis de cor e saem rabiscando formas que fingimos que entendemos – como num teste de psicotécnico – só para recompensar a sua dedicação.

São divinos esses bebês porque enxergam a vida com a lucidez que nós já perdemos. És divino, Bento.

Quando olho pro meu afilhado e faço sinal de positivo, ele só me olha. Enquanto eu espero a repetição do mesmo gesto que consiste em cerrar o punho e esticar o polegar. Ele só me olha. Como se me admirasse.

A vida é duma simplicidade pros bebês! E não será esta a mesma vida que vivemos nós?

Adultos retiram Deus de suas vidas e ficam cegos para as graças que o mundo nos apresenta a cada repetição ímpar do nascer do sol. Adultos preenchem suas horas com coisas quaisquer e nunca têm tempo para o que admitem ser essencial. Adultos são gente estranha procurando entender a dinâmica cerebral dos bebês. Dos bebês e da sua divindade.

Atrás das portas aqui em casa há uma bolinha de borracha presa no chão. Sua função é evitar que a macaneta da porta bata na parede quando aberta repentinamente. Todos os finais de semana, Bento tenta tirar a tal bolinha dali para brincar e não consegue. E não entende. Por que a bolinha não pode vir brincar comigo? Por que, meu Deus?

Quando Bento me ver fazer um sinal de positivo e me devolver o mesmo gesto, vou passar a entendê-lo melhor. Quando Bento entender a razão pela qual aquela bolinha cinza e suja está presa ao chão, Bento terá crescido. Bento será mais previsível, mas menos divino, menos lúcido. Bento será só mais um de nós, crescendo para tornar-se cada vez mais só mais um de nós. Um esclerosado.

Juliano RigattiA lucidez do Bento
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Bento é bento

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Quase podia ouvir as paredes e o chão da igreja trincarem naquela manhã fria de 29 junho, na paróquia Santa Flora, no bairro Cristal, em Porto Alegre. Eu já tinha decidido que sairia dali para movimentar meus músculos endurecidos e colocar uma barrinha de cereal no meu estômago oco. Já tinha decidido por isso. Não sabia o quanto mais podia aguentar. A voz daquele leigo à minha frente já soava sem sentindo tanto era o frio que eu sentia. Ele dizia palavras sem nexo e eu podia ver minhas mãos gelarem.

O Bento estava em paz, ora no colo da avó, ora no colo da mãe. Adormecia, aquecido por uma angelical roupa de tricô branca, preparada exatamente para esta ocasião, o seu batismo.

Quando fomos orientados a nos aproximar da pia batismal, eu levantei aliviado por ainda poder sentir com normalidade cada um dos meus membros. E o Bento em pouco tempo tornar-se-ia mais do que filho de Deus e membro da Igreja. Ele seria, logo após a água daquela jarra de vidro molhar o seu sensível couro cabeludo, um ser humano premiado.

Porque o Bento, meu sobrinho Bento, nascido há pouco mais de dois meses, agora é, sim, um ser premiado.

O Bento é um brasileiro premiado por ter a sua volta pais, avós, tios-avós e dindos — este quem vos posta é um deles — preocupados em iniciá-lo em um caminho que, mais tarde, na vida adulta do Bento, poderá ser decisivo. Porque, no mínimo, quem está em Deus, como o Bento está desde as 11h30 daquele domingo, respeita a instituição família, fundamento da sociedade, respeita a si próprio e a existência do outro. No mínimo isso — e, convenhamos, só isso que entregamos ao Bento já fará uma baita diferença na sua vida e na vida desse país. Ele poderá até não aceitar, mais tarde, a religião católica. Ate poderá. Mesmo assim, Bento será um privilegiado, será um premiado. Duvido que deixe de crer em Deus, duvido que deixe de sentir no seu íntimo o desejo de viver a beleza da vida e poder enxergá-la além dos computadores, além dos expedientes de trabalho, além do extrato do banco, além dos blogs e do twitter, além da rotina cinza dos dias. E se tu esqueceres desses vitais desejos, meu afilhado Bento, quero estar vivo para poder, com voz trêmula, te dar aqueles conselhos de engenheiro de obra pronta, sabe?

Bento, tu ainda nem fala e mal pode diferenciar a sacada e o banheiro, mas já é bento. E desde já, a tua existência nos abençoa com este simples, mas grandioso lembrete: Deus está aqui.

Juliano RigattiBento é bento
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Deus existe

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Embora eu tenha completa convicção da existência de Deus e do seu poder sobre todas as coisas desse mundo, sempre me frustrei por nunca ter convencido um cético disso.

Agora chegou esse momento.

Você está caminhando, voltando do almoço, do refeitório da empresa, quando avista ao longe aquela sua colega de trabalho. Você não é íntimo a ponto de perguntar como foi o final de semana e fazer graça da marquinha do biquíni no ombro esquerdo, nem é desconhecido suficiente para ignorá-la. O que lhe cabe então? Cumprimentá-la, naturalmente. Simples.

Todo esse raciocínio lógico se dá em pouquíssimos segundos enquanto ela se aproxima rapidamente. Você precisa medir a distância para que, ao mesmo tempo, não a encare por muito tempo, nem a deixe passar, enquanto está de cabeça baixa. Você busca, com determinação, o tempo certo. Quase como no futebol. Naquela corrida antes de acertar o chute na bola. Alguns centímetros a menos e você pode errar a bola. Um passo a menos e você corre o sério risco de, imaginem, tropeçar e cair.

O fato é que a tal colega está chegando, está a poucos metros. É agora. Você a mira no tempo certo, olha nos seus olhos e pronuncia um “olá, tudo bem?” apetitoso, assim, cheio de letras e fonemas.

E ela? Nada.

Ela o ignora solenemente. Como se você simplesmente não habitasse esse mundo insólito..

É até engraçado. Parece que está falando sozinho. Sabe Ghost, o filme aquele? Assim. Você é só um fantasma educadinho distribuindo olás por aí. Um babaca diplomático querendo que todos os colegas de trabalho saibam quem você é e igualmente estejam interessados em saber se está tudo bem com a sua vida. Babaca.

E você fica irado. Mesmo se estivesse afônico, ela perceberia pelo olhar que você a cumprimentou. Mas não. Ela o ignorou. Solenemente. Sem pestanejar. Ela pensa que é quem? Alguém melhor do que eu? Que não precisa me cumprimentar, nem passar a impressão de que quer saber como eu estou? Ela pensa que não precisa do meu olá? Vadia.

Nesse momento, uma luz desce sobre você, o inspira e você tem a certeza de que fez a coisa certa. E que você não é a única testemunha daquela cena humilhante. Alguém está vendo tudo isso. Tem mais alguém achando graça e ódio daquilo. Você sobreviverá e será recompensado no tempo certo. Vou revelar para vocês: este alguém é Deus. Deus, que tudo vê e tudo percebe, está guardando um tesouro para você que cumprimenta as pessoas e não é correspondido. Só Deus para olhar para você numa hora dessas. Ele tem que existir.

Juliano RigattiDeus existe
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