Nosso perene conhecimento

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Cônego Engelberto era como todos chamavam o padre grande, velho e inteligente que chefiou a paróquia aqui perto de casa por muitos e muitos anos. Em especial, na minha infância e adolescência. Era também polêmico o Cônego Engelberto. A começar pela pronúncia do seu nome. Os crentes dividiam-se entre os que pronunciavam o jê de Engelberto como jê de gato e os que diziam o mesmo Engelberto com jê de gente. Sabem? Engelberto com jê de gato pra uns, Engelberto com jê de gente pra outros. Era dura a disputa.

Agora, o Cônego Engelberto dividia mesmo opiniões por sua intolerância. E ela aparecia, por exemplo, na sua longa homilia das missas, aquela explicação das leituras bíblicas que os padres fazem. Durante muitos anos, tinha como certo que o sermão, no que há de pejorativo na palavra sermão, tinha nascido ali, na homilia no Cônego. Embaixo de sua enorme careca sardenta, o velho padre ajeitava-se demoradamente na cadeira de estofado bordo, enquanto todos o aguardavam, em silêncio, começar. Isso porque o Cônego Engelberto não gostava de barulhos enquanto falava. Uma vez ficamos nós três, pai, mãe e eu, mais um montão de gente, sentadinhos, aguardando um bebê parar de chorar para recomeçar a ouvir as afadigadas palavras do Cônego Engelberto.

Mas não foi só a intolerância dele que me marcou. Foi o raro conhecimento. Principalmente este. Até hoje, ouve-se falar das inteligentes, das cultas palavras que saíam daquele senhor. Das análises políticas, econômicas e sociais da paróquia, da cidade e do país. O Cônego divagava sobre a importância cultural das telenovelas e falava de religião com propriedade. Mais: conhecia línguas, muitas línguas. Eu nunca tive o prazer de conferir, mas ouvi mais de uma vez dizerem que o Cônego conhecia não-sei-quantos idiomas. Sete? Uma coisa assim, seis ou sete. Incrível.

E isso, que o Cônego Engelberto tinha um grande conhecimento, isso nunca foi polêmico pra ninguém.

Sabem que um dia ele, o Cônego Engelberto, virou pra mim e me disse uma coisa que nunca esqueci? Olha, essa nunca contei pra ninguém. Estávamos minha irmã e eu na casa paroquial, minha irmã resolvendo alguma coisa do CLJ e eu de metido. Ele virou pra mim e disse:

– E esse menino, quem é? Vai dar um moço inteligente. Essas duas entradas no cabelo, na frente, isso indica que será um moço muito inteligente – e ensaiou um sorriso amigo como só quem o viu sorrindo sabe como era.

Não, não me interpretem mal. Não é só por isso que eu admiro a sabedoria do Cônego Engelberto.

E foi esse senhor, o Cônego Engelberto, que já faleceu há um bom tempo – mais precisamente numa manhã ensolarada de sexta-feira, enquanto o Bacon e eu grampeávamos quadrantes –, que me ensinou o valor do conhecimento. Minha mãe disse um dia e eu nunca mais esqueci:

– Isso não podia ser assim. A pessoa morre e está tudo acabado, tudo perdido. Tudo. O que estudou, o que leu, o que aprendeu, as línguas que fala…

A estupefação da minha mãe me marcou. Sim, porque mães marcam quando ficam estupefatas com coisas naturais da vida. Não com internet ou com o que fazemos no trabalho. Mas com coisas de ordem natural. E com isso ela ficou mesmo admirada e desiludida. Desde lá, desde a morte do Cônego Engelberto, do fim dos seus sábios sermões e da admiração da minha mãe com tudo isso, que passei a valorizar o conhecimento que admiramos. Todo e qualquer. E a perenidade deste conhecimento. E a ter certeza de que ele, junto da fé, é algo que ninguém nos tira. Só a morte, talvez.

Juliano RigattiNosso perene conhecimento
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