O Prendedolho e o Bento

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Olá, meu nome, como vocês já desconfiam, é esse troço esquisito: Prendedolho. Chamam-me assim porque, além de ter nascido um simples prendedor de roupas de madeira, eu desenvolvi uma capacidade que me difere dos outros. Digo pra vocês, e sei que posso causar espanto a um ou outro, mas eu posso ver. Isso, enxergar. Distinguir entre um objeto e outro, entre uma pessoa e outra. Taí a razão do meu nome. Prendedolho. E estou aqui, contando essa história pra vocês, porque há exatamente um mês minha vida mudou.

Tinha uma rotina era de um prendedor de roupas qualquer. Tenho até hoje como habitat natural uma grade, em formato de elos de corrente, que decora uma estreita janela ao lado da porta de uma cozinha. Em Canoas. Vivo aqui desde sempre. E gosto bastante deste lugar. Percebo que sou útil, sabe? E como é bom sentir-se útil… A dona Ema, avó do Bento, aquele do título ali de cima, é quem mais convive comigo. Isso, claro, até o seu neto nascer, desenvolver-se e chegar ao sétimo mês. Coisa que contarei a vocês com mais detalhes daqui a pouco. Bom, sou útil para a Dona Ema porque volta e meia ela precisa de um prendedor de roupas para prender roupas no varal (óbvio!) ou para funções um pouco mais nobres. Posso dizer, com orgulho, que já atuei como prendedor para pacotes de biscoito, para pacotes de erva-mate e até – morram de inveja! – para decorar a cozinha da dona Ema. Verdade. Uma vez ela pôs em mim umas bonitas flores de biscuit e eu tornei-me uma espécie de bibelô da dona Ema. Ela pendurava-me a um bonito pano de prato, com bordas de crochê, em cima da pia da cozinha. Mas foi só uma fase. Depois, voltei ao anonimato da minha grade preferida. Volta e meia, pegavam-me de novo para evitar que o ar entrasse dentro dos pacotes de biscoito ou de erva-mate. No caso do biscoito, o ar o amolece, e no da erva-mate, pelo fato de ela ser muito leve, ela pode voar se a embalagem ficar aberta. Sempre culpa do ar. Quando eu ocupo o meu posto mais tradicional também o faço para evitar que o ar, neste caso mais conhecido como vento, impeça as roupas de cair. Já aconteceu uma vez. Um irmão meu quebrou e o vento jogou uma calça jeans na grama. Tinha chovido e aquela calça, além de não secar, teve de ser lavada de novo. Quando isso acontece, pra nós prendedores, é o pior dos mundos. É como se fracassássemos, sabe? E como vocês, humanos, temos dificuldade de lidar com o fracasso.

Coisa que o Bento, o sobrinho e afilhado do Juliano, começou a exercitar neste sétimo mês. Deixem-me falar pra vocês sobre o Bento e sobre minha relação com esse piá. Falando nisso, ele completa oito meses hoje, 15/12, viram? Bom, essa bela criança, de pernas e braços brancos e compridos, me descobriu dia desses. Estava ele no colo da dona Ema, a dona Ema de pé, quando eu o vi me mirando. Tentei desviar o olhar, fazendo que não era comigo, mas foi em vão. Ele me olhou reto, começou a fazer biquinho com a boca, esticou o braço em minha direção e começou a balançá-lo. Braços e pernas em grande entusiasmo. Fiquei apreensivo, quase assustado. Embora estejamos sempre em contato com mãos humanas, eu fiquei amedrontado com aquela pequena pessoa que olhava pra mim de um jeito estranho e fazia gestos como se quisesse me fazer algum mal. Só mais tarde descobri que não era pra tanto. Acabei descobrindo que pessoas como vocês, quando estão nessa idade, com seis ou sete meses, precisam pegar com as mãos todo tipo de coisa e, mais: levá-las ate à boca. Foi isso que o Bento passou a fazer comigo todos os dias que vinha visitar sua avó, a dona Ema, aqui em Canoas. Todos os dias. Ele entrava na cozinha e vinha direto me pegar. Era até divertido, sabem? Ele me pegava, olhava pra mim, me balançava um pouco e logo me colocava em sua boca molhada. E ficava ali, me melecando todo com sua saliva.

Até que o tempo passou, o Bento cresceu e não contentou-se em pegar-me e levar-me ao encontro de sua língua. Foi desse dia em diante que descobri que havia algo de ruim em poder ver. Digo pra vocês que desenvolvi medo de altura. Pode? Eu que sempre vivi no alto de um varal com medo de altura! Mas foi isso. Culpa do Bento. Essa criaturinha sem noção. Tá bom, eu sei que ele não tem culpa. Mas e eu? Como eu fico? E a acrofobia?

Meu drama começou quando o Bento completou sete meses. Naquele dia, o Bento pegou-me, como sempre, mostrou-me o seu biquinho, como sempre, e levou-me à sua boca. Tudo como sempre. Até que o Bento descobriu que podia fazer mais do que isso. E me usou. Descobriu que o Prendedolhozinho aqui podia ser ainda mais divertido. Perguntem se ele me consultou, perguntem! Que nada. Sabem o que ele passou a fazer desde lá? O Bento e os seus perversos dedinhos de unhas minúsculas passaram a soltar-me do alto do colo de sua avó. Sem dó, sem piedade, sem o mínimo de noção do perigo. E seu eu me quebrar todo? E se o ferro que sustenta meu corpo e garante minha profissão se soltar? Mas, não. Ninguém se preocupa comigo. Querem mesmo é ver o tal Bentinho se divertindo às minhas custas. É só o querem. Humanos.

Já estou acabando meu desabafo. Sabem o que mais eu ouvi esses dias? Sabe qual foi a desculpa que eles estão dando para esse mais recente passatempo do Bento? Que faz parte do desenvolvimento da criança a capacidade de pegar e soltar as coisas. De lidar com a perda, com o fracasso. Que ele precisa realizar a experiência de causa e efeito. Que mesmo quando um objeto está longe do seu campo de visão, continua existindo e pode voltar às suas mãos. Ora, façam-me o favor! E não podia ser de uma distância menor? Não podia ser em cima daquele seu cobertor fofo? E não podia ser com um daqueles seus brinquedos coloridinhos, de plástico? Não podia?

Este é o último parágrafo. Sim, já estou mais calmo. E quero que o senhor, seu Bento, quando puderes ler isso, que o senhor me valorize. Que valorizes o que eu representei para ti. Quero que saibas que o Prendedolho aqui não foi um prendedor de roupas qualquer. Que participei do teu desenvolvimento como criança. Que fui útil para a articulação dos teus dedinhos, para o amadurecimento da tua fase oral e, mais importante, para a tua noção de desapego. Foi importante tu perceberes que já podias viver sem mim. Sem o Prendedolho querido aqui. E isso, seu Bento, pelo que eu observo desse monte de gente grande, tu terás que fazer muitas vezes ainda na tua vida aqui neste mundo. Ter a capacidade de valorizar a si mesmo e poder despreender-se das coisas e dos objetos será fundamental para a tua evolução. Sem medo da perda ou da derrota. E daí não só como ser humano que nasce, cresce e aprende a caminhar. Mas como uma pessoa mesmo. Que passará a valorizar-se pelo que é e não pelo que possui. Que passará a valorizar o mundo e as pessoas como são e não pelo que têm.

Se cuidarem bem de mim, maneirando nas alturas, eu continuarei aqui. No alto dessa grade, disponível para você e para os demais. Para secar as roupas, para combater as frestas. Eu, o mais especial dos prendedores de roupa que vocês já conheceram.

Abraço forte, Prendedolho.

Juliano RigattiO Prendedolho e o Bento
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O Ventoso e o Bento

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O Bento, o sobrinho e afilhado do Juliano, este que escreve para vocês neste blog, digo pra vocês, fez a sua grande descoberta por esses dias. Isso mesmo, talvez possa-se dizer que o Bento fez, há poucos dias, a sua primeira grande descoberta desde seu primeiro instante de vida, no hospital Ernesto Dorneles, em Porto Alegre. Porque outras pequenas descobertas o Bento já tinha feito. Por exemplo. Ele descobriu, desde que nasceu, que chorar não é a forma mais eficiente de receber o que lhe falta – ou leite ou alguém que lhe faça dormir. Descobriu que chorar não é a forma mais eficaz. É a única. Outra pequena, mas fundamental, descoberta do Bento, o afilhado do Juliano e da Samanta, foi sua pequenina, mas ágil, língua. E imediatamente junto desta, Bento aprendeu outra coisa de igual importância. Sabem o que é? É que embora a língua o ajude a mamar, fazendo repousar sobre si o bico do seio materno e auxiliando na obtenção do leite (eu imagino que seja assim), esta mesma língua, esta mesma e insubstituível língua, não pode agarrar objetos distantes mais de cinco centímetros da boca. Ela é simplesmente incapaz disso.

Mas estas são apenas as pequenas descobertas do Bento, neto do José e da Ema. A maior de todas ainda não contei. E quem sou eu? Eu faço parte desta magnífica descoberta. Aguardem.

Os brasileiros tiveram a presença de espírito de metaforizar a genial teoria da evolução de Darwin com o famoso “quando a água bate na bunda o sujeito aprende a nadar”. Bom, se fica mais fácil de entender, sem problemas, usemos esta metáfora mesmo. Digamos, então, que, quando o Bento descobriu que sua hábil língua era inofensiva a objetos distantes, a água bateu na sua fofa e branca bundinha. Certo? E Bento, o neto da Dona Elisa, teve de aprender a nadar. Certo? E como Bento fez isso? Batendo as perninhas! Não! Nada disso. A fantástica descoberta do nosso Bento são, atenção: as suas pequeninas mãos. Isso mesmo. Há algumas semanas que o Bento já não repete suas frustadas tentativas de agarrar as coisas com a língua, ele usa suas duas próprias mãos.

Ventoso

Ventoso

E eu, quem sou? Prazer, meu nome é Ventoso. Aham, Ventoso. Sou nada mais, nada menos do que o primeiro brinquedo no qual o Bento tocou conscientemente (conscientemente, isso é importante) com suas duas desajeitadas mãos. Claro que virão outros, como a Centopéia, dizer que foi nela que o Bento tocou primeiro. Nãããão foi. Não acreditem nessa impostora. Foi em mim, em quem vos escreve agora, no Ventosinho aqui, que o Bento inaugurou seu tato. Bom, fui dado de presente ao Bento justamente pela Samanta e pelo Juliano, seus dindos, e meu nome é este porque eu tenho uma enorme ventosa na minha base, o que me permite ficar grudado em quase qualquer superfície da casa. Essa é, portanto, minha primeira virtude: adapto-me facilmente. Depois disso, colocam a criança, neste caso, o Bento,  na minha frente e ele fica girando três astes de plástico presas bem no meio do meu corpinho. As grandes atrações são os simpáticos animaizinhos coloridos que ficam na ponta de cada uma das minhas astes: o tucano, a borboleta e o macaco. As três astes giram como num catavento e os três bichinhos coloridos também contornam o seu próprio eixo. Manero, né? As crianças dessa idade, da idade do Bento, adoram.

Bem, devidamente apresentados, eram estas as novidades que eu tinha pra contar pra vocês. Que eu, o Ventoso, sou o mais novo amigo do Bento, e que o Bento, o filho da Ana e dos Luís, acaba de descobrir que, além de chorar, de mamar, de dormir e de adestrar sua língua, agora pode usar suas duas e poderosas mãos.

Juliano RigattiO Ventoso e o Bento
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