Tudo pelo sorriso da Rebeca

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A Rebeca, minha afilhada de nove meses, tem um tapete de E.V.A. colorido, em formato de quebra-cabeça, com letras destacáveis de cor oposta no miolo de cada peça. O tapete colorido dá limites à Rebeca. Os primeiros e essenciais limites. Nele, se acomodam a Rebeca, sua tartaruga com pescoço vibratório, sua borboleta multicolorida e todos os demais brinquedos. Enquanto brinca em seu universo de imaginação, a Rebeca devolve um sorriso a todos que a interrompem. Ele é assim, o sorriso: coberto por uma franja e um nariz, cada um à sua perfeição, ele tem poucos dentes, e o fato de ser espremido pelas bochechas faz com que se espalhe e seu rosto todo também sorria. Ou seja, gente, é contagiante o sorriso da Rebeca.

Uma de suas atividades preferidas no tapete-quebra-cabeça é um movimento acrobático que põe dois grupos da numerosa família em oposição — porque famílias grandes sempre alimentam suas polêmicas: uns apostam que é o início do engatinhar, enquanto outros, mais apressados, dizem que ela já está tentando se levantar. É que ela apoia as palmas das mãos no chão, faz um esforço tremendo até que seus pezinhos também estejam com as bases no solo, isso sem dobrar os joelhos, de forma que quase todo o seu peso seja acumulado nos membros superiores. “Um perigo”, grita a bisavó. “Deixa, bisa, ela tem que se experimentar”, ameniza a mãe, minha comadre Mel.

Um dia, a bisa teve razão e os bracinhos da Rebeca não suportaram seu peso. Ela foi-se com o rostinho ao chão. “Viu! Ai, meu Deus!”, exclamou a matriarca, tentando chamar pra si os méritos de seu conservadorismo.

Uma fração de segundos pra refletir sobre o que fazer diante da queda da Rebeca.

Uma hipótese seria correr em direção a ela, afagá-la, procurando ferimentos e soltando murmúrios do tipo: “E agora? Será que cortou o nariz? Ou o lábio?”, diria a mãe da Mel e vó da Rebeca. “Não faz mais isso, guria!”, alertaria o pai. “É perigoso até criar um coágulo na cabeça”, avisaria a bisavó.

Pra sorte da Rebeca, não fora essa a decisão.

As mães francesas, quando seus bebês choram à noite, levantam e param ao lado do berço, sem tocar o filho e sem que ele perceba. Em dois minutos, o bebê se acalma e volta a dormir. É uma reação típica de um ciclo do sono, chorar. Dizem elas que aos dois meses os francezinhos já dormem uma noite inteira.

O que estaria fazendo a mãe francesa se pegasse o bebê no colo e o acalmasse? Estaria ensinando-o como reagir cada vez que quisesse colo ou a mãe por perto.

E como reagiram com a queda da Rebeca, sua mãe e familiares? Sabiamente, não permitiram que ela se assustasse e desviram sua atenção para uma nova brincadeira. Tudo para não deixar o seu sorriso escapar. Tudo pelo sorriso da Rebeca.

A queda da Rebeca traz a nós, adultos, um belo aprendizado: o de que os problemas, desde os mais simples, podem ser ignorados.

Pense em um desconforto estomacal. Mentalize seus sintomas, suas causas e suas mais trágicas consequências. Segundo Nicholas Carr, autor de A Geração Superficial, um dos estudos sobre como padrões de pesamento afetam a anatomia de nosso cérebro, realizada por Álvaro Pacual-Leone, neurologista de Harvard, comprovou que parar em frente a um piano e imaginar os toques e os sons de cada tecla produz as mesmas mudanças cerebrais que tocar de fato o instrumento musical. “Nossos pensamentos podem exercer uma influência física sobre nosso cérebro (…). Tornamo-nos, neurologicamente, o que pensamos”, conclui Carr. Quer dizer que a célebre advertência “Não mime os seus problemas”, do Pe. Eduardo Delazeri, tem sua razão. Ao concentrar sua atenção no estômago, procurando fazer mais que o remédio, o adulto age como se permitisse à Rebeca assustar-se com o arranhão na testa ao cair.

O sorriso da Rebeca é bonito demais para que permitissem que se fosse, sendo substituído por berros e lágrimas. Cada momento da vida de um adulto é único o bastante para que ele permita substituí-lo por suposições de possibilidades negativas.

O que aprendi com a Rebeca é que mais do que desperdício, o nosso pessimismo é um grande risco: vai que o cérebro resolve acreditar na gente e torna real a ideia de uma infecção intestinal. Ou vai que isso custe o nosso sorriso.

Juliano RigattiTudo pelo sorriso da Rebeca
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Temos o mundo inteiro no nosso quintal

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Lembro como se fosse agora. Eu brincava de Comandos em Ação e sempre que havia algum tiroteio ou uma bomba explodisse, eu piscava os olhos. Mas piscava numa velocidade inimaginável para os adultos, abrindo e fechando os olhos, enquanto o inimigo era destruído, aniquilado. Minhas bochechas inchavam de ar e minha boca produzia os efeitos sonoros do bombardeio. Enquanto meus olhos piscavam. Ininterruptamente. Era o efeito precursor do efeito três dê. Som e luzes na maior batalha daquele turno de aventuras. E como eram emocionantes minhas brincadeiras com os Comandos em Ação. Como eram.

Meu afilhado e sobrinho Bento, com seus dezenove meses de adaptação a este mundo, já pode dizer que possui cinco grandes amigos – além, é claro, do Prendedolho e do Ventoso: o Pablo, um pinguim azul – a quem o Bento, intimamente, resolveu chamar de “pá” –; o Tyrone, um alce cor de alce; a Uniqua, um bicho cor-de-rosa sem definição de espécie, que instiga a criançada a começar a pensar em extraterrestres; a Tasha, que não é uma segunda filha da Xuxa, mas uma simpática hipopótama amarela; e o canguru Austin. Os cinco amigos são personagens do desenho animado Backyardigans, conhecido também como série musical, sensação entre as crianças deste nosso tempo. E sabem o que fazem os Backyardigans para encantar as crianças e os pais das crianças? Brincam no quintal de sua casa. E piscam os olhos e enchem a boca de ar. E imaginam um mundo que, aparentemente, não existe.

Qual a tua relação com o mundo? E como tu te relacionas com as pessoas? E o que significa a natureza e as inúmeras outras cenas com as quais tu te deparas diariamente? Muitos anos depois da última brincadeira com os Comandos em Ação e bastante tempo antes também de segurar o Bento nos meus braços pela primeira vez, fui apresentado ao documentário Quem Somos Nós.

O documentário, produzido em 2004, ensina física quântica. Mas não do jeito complicado com que tu deves estar imaginando. A sua principal lição é que, constantemente, podemos piscar os nossos olhos ininterruptamente e encher nossa boca de ar para produzir imagens e sons diferentes. Ele prega que podemos ir até o quintal de nossas casas e transformá-lo em uma nave da Nasa, em um navio de piratas ou em um campo de futebol do Brasileirão. Tudo com a imaginação.

Mas a mente não produz só imaginação.

A nossa mente, como bem sabemos, comanda tudo. Nossa relação com o mundo, nossa relação com as pessoas, nossa relação com a natureza e com todas as cenas com as quais nos deparamos. Nossa mente tem o poder de criar, de transformar, de multiplicar possibilidades. Ela tem o poder, se quisermos, de captar uma das milhares de possibilidades que passam à nossa frente a cada instante e torná-la realidade.

E pra que serve isso? Para sermos mais felizes, basicamente. Os Comandos em Ação, os Backyardigans e o Bento, com pouco mais de um ano de sabedoria, são sinais de felicidade para mim. Tudo porque, querendo ou não, sendo bom ou não pensar assim, minha mente é completamente responsável pelo que sinto, por como vivo.

O lugar onde estás nesse momento, lendo este texto, certamente possui um significado para ti. De um lugar agradável, de um lugar agitado, de um lugar pouco aprazível. Seja lá qual for, não importa. O que importa é que este significado está sendo produzido pela tua mente. Tu, involuntariamente, atribuis um significado a tudo o que vês, a todos que conheces, a tudo o que vives. Tu escolhes o significado para tudo.

E, por isso, tudo pode ser diferente, nos ensina Pablo, o pinguim criativo dos Backyardigans.

De mais uma crônica sobre a primeira infância do meu amado afilhado Bento, isso aqui virou um texto de auto-ajuda, alguns pensarão. Pode ser. E não gostarão deste texto. Também pode ser. Porque ninguém gosta de auto-ajuda. E eu sei bem porquê.

Porque todos, me incluo, preferimos, não sei a razão, vivermos no entediante quintal de nossa casa, sem piscar os olhos e sem encher as bochechas de ar. Preferimos deixar nossa mente imaginar o que quiser, com o pessimismo que é próprio dos animais, atentos à próxima ação de seu predador. Em geral, as pessoas desdenham livros de auto-ajuda. Estranhamente, essas pessoas são as mesmas que nunca puseram em prática nenhuma das absurdas sugestões do autor.

Estranhamente, tem gente que prefere acreditar em suas limitações. Tem gente que até prefere pensar que sua vida não tem mais sentido, enquanto ignora dizerem que tem o mundo inteiro em seu próprio quintal.

Os Backyardigans

 

Juliano RigattiTemos o mundo inteiro no nosso quintal
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A lucidez do Bento

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Eu vejo divindade nos bebês. Especialmente no meu afilhado Bento, que acaba de completar um ano entre a gente. Desde antes do seu nascimento, falei muito do Bento aqui. Mas nunca disse o quanto admiro a sua lucidez, a sua divindade.

E a divindade do Bento me fez entender que quanto mais crescemos, mais precisamos redescobrir a divindade que está escondida dentro de nós. Divindade esta que, para ser bem ecumênico e atingir a todos, pode ser entendida por alegria de viver, entendimento do nosso universo ou coisa que o valha.

Fica observando um bebê com seu pouco mais – ou pouco menos – de um ano de vida. Observa. Todos os seus hábitos, suas reações e manifestações são incompreensíveis pra nós. Como se eles se relacionassem com a vida e com seus elementos essenciais de um jeito particular. Como se vivessem indiferentes aos nossos padrões de existência. Muitos até chamam isso de inocência.

Observa.

Uma colher não é uma colher como são para nós, adultos, as colheres. É mais. É alguma coisa especial, grande, com curvas engraçadas, que brilha e emite sons divertidos quando batida na mesa ou jogada no chão.

Você chama um bebê e ele não atende. Mas quando você o esquece, ele fixa o olhar em você como se você fosse muito diferente dos demais.

Você faz as suas palhaçadas, tapa e destapa o rosto, planta bananeira e nada detém a atenção do bebê. Mas quando a mãe ou a avó batem palma bem de longe, lá de longe, seu sorriso se enche de gengivas.

A mamãe quer dar-lhe de comer e ele recusa. Recusa porque viu algo de novo em algum lugar da varanda. Algo que merece toda sua energia naquele momento. Ele age como se cada momento fosse nunca mais voltar. Sábio ele, hem?

Sem os nossos vícios de adultos, os bebês gargalham e apontam para os passarinhos. Espantam-se e balbuciam sons sem sentido. Contemplam as flores por meses e meses até crescerem, receberem nossa influência e passarem a preferir os shopping centers e os smartphones. Sem a nossa desconfiança, os pequenos admiram-se com um conjunto de lápis de cor e saem rabiscando formas que fingimos que entendemos – como num teste de psicotécnico – só para recompensar a sua dedicação.

São divinos esses bebês porque enxergam a vida com a lucidez que nós já perdemos. És divino, Bento.

Quando olho pro meu afilhado e faço sinal de positivo, ele só me olha. Enquanto eu espero a repetição do mesmo gesto que consiste em cerrar o punho e esticar o polegar. Ele só me olha. Como se me admirasse.

A vida é duma simplicidade pros bebês! E não será esta a mesma vida que vivemos nós?

Adultos retiram Deus de suas vidas e ficam cegos para as graças que o mundo nos apresenta a cada repetição ímpar do nascer do sol. Adultos preenchem suas horas com coisas quaisquer e nunca têm tempo para o que admitem ser essencial. Adultos são gente estranha procurando entender a dinâmica cerebral dos bebês. Dos bebês e da sua divindade.

Atrás das portas aqui em casa há uma bolinha de borracha presa no chão. Sua função é evitar que a macaneta da porta bata na parede quando aberta repentinamente. Todos os finais de semana, Bento tenta tirar a tal bolinha dali para brincar e não consegue. E não entende. Por que a bolinha não pode vir brincar comigo? Por que, meu Deus?

Quando Bento me ver fazer um sinal de positivo e me devolver o mesmo gesto, vou passar a entendê-lo melhor. Quando Bento entender a razão pela qual aquela bolinha cinza e suja está presa ao chão, Bento terá crescido. Bento será mais previsível, mas menos divino, menos lúcido. Bento será só mais um de nós, crescendo para tornar-se cada vez mais só mais um de nós. Um esclerosado.

Juliano RigattiA lucidez do Bento
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Para o que tu bates palmas?

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Escrevo esse texto com uma tristeza alegre, que é como o poeta Fabrício Carpinejar define a saudade. Não vejo o Bento há exatos 20 dias e parece uma eternidade. E ele deve estar fazendo milhões de coisas novas que ainda não presenciei e que, por isso, não pude relatar aqui pra vocês. E não o verei pelo menos nos próximos cinco dias. Ele deve estar um gigante já. Tudo isso é uma lástima. Uma tristeza não ver o meu afilhado Bento. Mas uma tristeza alegre.

Fiquem com a última evolução que pude presenciar no meu sobrinho: ele agora bate palminhas.

***

Minha memória é seletiva. Terei leitores rindo essa hora, sei. Dirão que ela não selecionou nada até hoje. Mas a verdade é que, embora eu também desconfie da primeira frase, tem vezes que me surpreendo com flashs que me veem do nada, contando alguma situação relevante do passado. A última ocorrência disso foi na tarde de um sábado quente desses aí.

O aniversário de um ano do Miguel, filho do Léo, meu ex-chefe e grande pessoa, me fez lembrar do dia em que recebi vizinhos taiwaneses aqui em casa, bem no início da minha faculdade. Sim, vizinhos made in Taiwan. Precisava entrevistá-los para um trabalho. O que me lembro porque me marcou foi quando eles disseram que no país deles — e em toda cultura oriental — eles não festejavam as crianças como nós o fazemos. Mas os idosos. Para eles, a pessoa digna de ós e de salvas de palmas é, sim, senhoras e senhores, o velho. Aquele que viveu a vida, que sofreu, que enrugou-se, e que contraiu sabedoria, o maior de todos os bens humanos. Não a criança e sua paupérrima compreensão da vida. Não a criança e seus passinhos sôfregos. Não a criança e seu idioma de meia dúzia de vocábulos molhados de baba. Não a criança e seus livros repletos de figurinhas.

Mas a criança ocidental ela é lucrativa. Porque movimenta-se em torno de um mundo de cores e de formas, ela tem curiosidade, ela consome e quer as coisas pra ela. E mais coisas pra ela são fabricadas. Até que ela deseje mais e deixe seu pai frustrado por não poder saciar sua sede. E ela tem futuro, diferentemente do velho. A criança é, portanto e ao mesmo tempo, um bom cliente e um investimento de curto, médio e longo prazo. A criança é a sustentabilidade da economia. E isso movimenta a roda dessa mesma economia. E gera empregos e renda. Para que os pais tenham condições de serem felizes e de comprar mais coisas que as crianças querem. É por isso, portanto, que fazemos festas de um ano e batemos palmas para as crianças. Elas são nosso sustento.

Bater palmas, diga-se, é uma coisa que gostamos de fazer. É o principal símbolo da concordância, do elogio, da condescendência.

E o Bento, o meu sobrinho e afilhado de quase dez meses, começou a bater palmas esses dias. Começou a fazer festa praquilo que aprova. Em sua ingênua forma de fazer juízo de valor, mas é isso: o Bento já aprova as coisas de seu mundo com uma desengonçada salva de palmas.

Fico aqui pensando, de trás dos meus óculos antigos (há quanto tempo não troco meus óculos!), para o que o Bento baterá palmas quando puder fazer avaliações do tipo que eu faço, que, nós adultos, fazemos? Haverá guerras para o Bento se recusar a aplaudir? E Bento baterá palmas para o casamento homossexual? E para o BBB 22? E para a volta do Roth, com a idade do Zagallo, vindo treinar o Grêmio? E Bento concordará com a lipo da namorada? E com a promoção do chefe que não faz nada?

E você, no alto de sua envergadura moral, para o que você bate palmas atualmente?

Juliano RigattiPara o que tu bates palmas?
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O Prendedolho e o Bento

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Olá, meu nome, como vocês já desconfiam, é esse troço esquisito: Prendedolho. Chamam-me assim porque, além de ter nascido um simples prendedor de roupas de madeira, eu desenvolvi uma capacidade que me difere dos outros. Digo pra vocês, e sei que posso causar espanto a um ou outro, mas eu posso ver. Isso, enxergar. Distinguir entre um objeto e outro, entre uma pessoa e outra. Taí a razão do meu nome. Prendedolho. E estou aqui, contando essa história pra vocês, porque há exatamente um mês minha vida mudou.

Tinha uma rotina era de um prendedor de roupas qualquer. Tenho até hoje como habitat natural uma grade, em formato de elos de corrente, que decora uma estreita janela ao lado da porta de uma cozinha. Em Canoas. Vivo aqui desde sempre. E gosto bastante deste lugar. Percebo que sou útil, sabe? E como é bom sentir-se útil… A dona Ema, avó do Bento, aquele do título ali de cima, é quem mais convive comigo. Isso, claro, até o seu neto nascer, desenvolver-se e chegar ao sétimo mês. Coisa que contarei a vocês com mais detalhes daqui a pouco. Bom, sou útil para a Dona Ema porque volta e meia ela precisa de um prendedor de roupas para prender roupas no varal (óbvio!) ou para funções um pouco mais nobres. Posso dizer, com orgulho, que já atuei como prendedor para pacotes de biscoito, para pacotes de erva-mate e até – morram de inveja! – para decorar a cozinha da dona Ema. Verdade. Uma vez ela pôs em mim umas bonitas flores de biscuit e eu tornei-me uma espécie de bibelô da dona Ema. Ela pendurava-me a um bonito pano de prato, com bordas de crochê, em cima da pia da cozinha. Mas foi só uma fase. Depois, voltei ao anonimato da minha grade preferida. Volta e meia, pegavam-me de novo para evitar que o ar entrasse dentro dos pacotes de biscoito ou de erva-mate. No caso do biscoito, o ar o amolece, e no da erva-mate, pelo fato de ela ser muito leve, ela pode voar se a embalagem ficar aberta. Sempre culpa do ar. Quando eu ocupo o meu posto mais tradicional também o faço para evitar que o ar, neste caso mais conhecido como vento, impeça as roupas de cair. Já aconteceu uma vez. Um irmão meu quebrou e o vento jogou uma calça jeans na grama. Tinha chovido e aquela calça, além de não secar, teve de ser lavada de novo. Quando isso acontece, pra nós prendedores, é o pior dos mundos. É como se fracassássemos, sabe? E como vocês, humanos, temos dificuldade de lidar com o fracasso.

Coisa que o Bento, o sobrinho e afilhado do Juliano, começou a exercitar neste sétimo mês. Deixem-me falar pra vocês sobre o Bento e sobre minha relação com esse piá. Falando nisso, ele completa oito meses hoje, 15/12, viram? Bom, essa bela criança, de pernas e braços brancos e compridos, me descobriu dia desses. Estava ele no colo da dona Ema, a dona Ema de pé, quando eu o vi me mirando. Tentei desviar o olhar, fazendo que não era comigo, mas foi em vão. Ele me olhou reto, começou a fazer biquinho com a boca, esticou o braço em minha direção e começou a balançá-lo. Braços e pernas em grande entusiasmo. Fiquei apreensivo, quase assustado. Embora estejamos sempre em contato com mãos humanas, eu fiquei amedrontado com aquela pequena pessoa que olhava pra mim de um jeito estranho e fazia gestos como se quisesse me fazer algum mal. Só mais tarde descobri que não era pra tanto. Acabei descobrindo que pessoas como vocês, quando estão nessa idade, com seis ou sete meses, precisam pegar com as mãos todo tipo de coisa e, mais: levá-las ate à boca. Foi isso que o Bento passou a fazer comigo todos os dias que vinha visitar sua avó, a dona Ema, aqui em Canoas. Todos os dias. Ele entrava na cozinha e vinha direto me pegar. Era até divertido, sabem? Ele me pegava, olhava pra mim, me balançava um pouco e logo me colocava em sua boca molhada. E ficava ali, me melecando todo com sua saliva.

Até que o tempo passou, o Bento cresceu e não contentou-se em pegar-me e levar-me ao encontro de sua língua. Foi desse dia em diante que descobri que havia algo de ruim em poder ver. Digo pra vocês que desenvolvi medo de altura. Pode? Eu que sempre vivi no alto de um varal com medo de altura! Mas foi isso. Culpa do Bento. Essa criaturinha sem noção. Tá bom, eu sei que ele não tem culpa. Mas e eu? Como eu fico? E a acrofobia?

Meu drama começou quando o Bento completou sete meses. Naquele dia, o Bento pegou-me, como sempre, mostrou-me o seu biquinho, como sempre, e levou-me à sua boca. Tudo como sempre. Até que o Bento descobriu que podia fazer mais do que isso. E me usou. Descobriu que o Prendedolhozinho aqui podia ser ainda mais divertido. Perguntem se ele me consultou, perguntem! Que nada. Sabem o que ele passou a fazer desde lá? O Bento e os seus perversos dedinhos de unhas minúsculas passaram a soltar-me do alto do colo de sua avó. Sem dó, sem piedade, sem o mínimo de noção do perigo. E seu eu me quebrar todo? E se o ferro que sustenta meu corpo e garante minha profissão se soltar? Mas, não. Ninguém se preocupa comigo. Querem mesmo é ver o tal Bentinho se divertindo às minhas custas. É só o querem. Humanos.

Já estou acabando meu desabafo. Sabem o que mais eu ouvi esses dias? Sabe qual foi a desculpa que eles estão dando para esse mais recente passatempo do Bento? Que faz parte do desenvolvimento da criança a capacidade de pegar e soltar as coisas. De lidar com a perda, com o fracasso. Que ele precisa realizar a experiência de causa e efeito. Que mesmo quando um objeto está longe do seu campo de visão, continua existindo e pode voltar às suas mãos. Ora, façam-me o favor! E não podia ser de uma distância menor? Não podia ser em cima daquele seu cobertor fofo? E não podia ser com um daqueles seus brinquedos coloridinhos, de plástico? Não podia?

Este é o último parágrafo. Sim, já estou mais calmo. E quero que o senhor, seu Bento, quando puderes ler isso, que o senhor me valorize. Que valorizes o que eu representei para ti. Quero que saibas que o Prendedolho aqui não foi um prendedor de roupas qualquer. Que participei do teu desenvolvimento como criança. Que fui útil para a articulação dos teus dedinhos, para o amadurecimento da tua fase oral e, mais importante, para a tua noção de desapego. Foi importante tu perceberes que já podias viver sem mim. Sem o Prendedolho querido aqui. E isso, seu Bento, pelo que eu observo desse monte de gente grande, tu terás que fazer muitas vezes ainda na tua vida aqui neste mundo. Ter a capacidade de valorizar a si mesmo e poder despreender-se das coisas e dos objetos será fundamental para a tua evolução. Sem medo da perda ou da derrota. E daí não só como ser humano que nasce, cresce e aprende a caminhar. Mas como uma pessoa mesmo. Que passará a valorizar-se pelo que é e não pelo que possui. Que passará a valorizar o mundo e as pessoas como são e não pelo que têm.

Se cuidarem bem de mim, maneirando nas alturas, eu continuarei aqui. No alto dessa grade, disponível para você e para os demais. Para secar as roupas, para combater as frestas. Eu, o mais especial dos prendedores de roupa que vocês já conheceram.

Abraço forte, Prendedolho.

Juliano RigattiO Prendedolho e o Bento
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A lua escura

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Era uma note sem lua, daquelas bem escuras. Na varanda do sítio, Alam, Felipe e Anita conversavam olhando o final da fogueira que tinham acendido para espantar os mosquitos.
De repente…
… Alan diz: –Vamos dormir, amanhã temos que levantar cedo para uma longa aventura…
… PRIMMM! PRIMMM! PRIMMM!
– Alô! atendeu Felipe.
– Quem é? – Felipe!
– Felipe!!!, vocês estão atrasados!!!, deviam estar lá as 6 horas e já são 8 horas!!! berra Júlio seu patrão.
– Estou indo chefe!
– TRINNNNN! desliga o telefone.
– Alan!!, Anita!!.
– Que é Felipe?. pergunta Alam.
– Nós estamos atrasados!
– É mesmo!!!!!!!!!!!
– Vamos!!! diz Anita…
– HHHHH! Chegamos. fala bem baixinho Anita. Alam, Felipe e Anita caminham mais três passos e… …HÁÁÁ!! HÁÁÁ!!
– PPPUUUMMMM!!! – Onde estamos? pergunta Felipe.
– Tirou as palavras da minha boa! afirma Alam.
– VVVUUUUMMM! – HÁÁÁ!! – PIMMM!
voa uma lança a cabeça de Anita, mas ela consegue se salvar. – TUUFF!! TUUFF!! cai pontas de gelo do teto do castelo em forma de chuva e então o que lhes resta é fugir…
… Quando Alam, Felipe e Anita começam a correr aparecem três carrinhos (de ferro) por um trilho. E então eles três entram nos carrinhos. Alam fica no 1º carrinho e Felipe e Anita no 2º.
De repente chega o fim do trilho e Alam fala desesperado: – Só nos resta é os nossos cabos de aço, para emergências!! – VVuuum!!!! (3 vezes) – PPiiimm!!! (3 vezes).
– Conseguimos!! – grita Anita. Mas derepente um fogaréu aparece em volta deles. Felipe olha bem para o fogo e bem lá dentro do fogo aparece uma estranha luz. Com muita curiosidade Felipe entra no fogo e de lá dentro tira uma caixa de ferro cadiada. Alam e Anita exclamam juntos: – Como vamos abri-la? – Já sei! – diz Felipe. – Co… – Pum!!! – atira com um revólver Felipe – Felipe não mexa nessa parte !!! – Alam!!, olhe lá é o fim do castelo! (das brincadeiras) grita Anita.
– Vamos embora!!! gritam os 3 juntos. E então eles vão embora felizes para sempre.

***

Eu posso lembrar do meu entusiasmo descrevendo e imaginando cada detalhe, característica e reação dos personagens dessa história. Entendo ainda hoje a razão de cada uma daquelas onomatopéias esquisitas com as quais ocupei as páginas brancas de meu pequeno caderno pautado, cuja capa ilustrava duas crianças sós e obesas, bebendo suco de uva Aurora em um piquenique. Anita, Felipe e Alam foram meus primeiros personagens. Ao longo do resto da minha infância, não lembro de outros. Devem ter existido, mas não lembro.

O que lembro e tenho registrado é um erro da educadora que foi testemunha deste texto, o qual pode ter sido a primeira manisfestação de uma criança que desejava imaginar mais, desejava inventar mais, desejava ser, sem saber, um artista. “Procure fazer histórias menores e cuide o parágrafo”. Foi o que ela deixou dito para mim depois desta bela história de aventura, fantasia e emoção, que um guri de nove anos – apenas nove anos! – acabara de criar.

Fala-se muito hoje da educação deficitária que temos no Brasil. Eu também fico intrigado com isso. No mínimo intrigado. Passados 18 anos, quantas professoras de séries iniciais continuam despreparadas para indicar limites, demonstrar interesse, perceber incapacidades, desenvolver aptidões e incentivar o lúdico?

 

Minha primeira ficção, aos nove anos

 

Minha história tinha tirinhas...

 

... cenas de ação

 

A avaliação da professora: "Procure fazer histórias menores."

Juliano RigattiA lua escura
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O Ventoso e o Bento

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O Bento, o sobrinho e afilhado do Juliano, este que escreve para vocês neste blog, digo pra vocês, fez a sua grande descoberta por esses dias. Isso mesmo, talvez possa-se dizer que o Bento fez, há poucos dias, a sua primeira grande descoberta desde seu primeiro instante de vida, no hospital Ernesto Dorneles, em Porto Alegre. Porque outras pequenas descobertas o Bento já tinha feito. Por exemplo. Ele descobriu, desde que nasceu, que chorar não é a forma mais eficiente de receber o que lhe falta – ou leite ou alguém que lhe faça dormir. Descobriu que chorar não é a forma mais eficaz. É a única. Outra pequena, mas fundamental, descoberta do Bento, o afilhado do Juliano e da Samanta, foi sua pequenina, mas ágil, língua. E imediatamente junto desta, Bento aprendeu outra coisa de igual importância. Sabem o que é? É que embora a língua o ajude a mamar, fazendo repousar sobre si o bico do seio materno e auxiliando na obtenção do leite (eu imagino que seja assim), esta mesma língua, esta mesma e insubstituível língua, não pode agarrar objetos distantes mais de cinco centímetros da boca. Ela é simplesmente incapaz disso.

Mas estas são apenas as pequenas descobertas do Bento, neto do José e da Ema. A maior de todas ainda não contei. E quem sou eu? Eu faço parte desta magnífica descoberta. Aguardem.

Os brasileiros tiveram a presença de espírito de metaforizar a genial teoria da evolução de Darwin com o famoso “quando a água bate na bunda o sujeito aprende a nadar”. Bom, se fica mais fácil de entender, sem problemas, usemos esta metáfora mesmo. Digamos, então, que, quando o Bento descobriu que sua hábil língua era inofensiva a objetos distantes, a água bateu na sua fofa e branca bundinha. Certo? E Bento, o neto da Dona Elisa, teve de aprender a nadar. Certo? E como Bento fez isso? Batendo as perninhas! Não! Nada disso. A fantástica descoberta do nosso Bento são, atenção: as suas pequeninas mãos. Isso mesmo. Há algumas semanas que o Bento já não repete suas frustadas tentativas de agarrar as coisas com a língua, ele usa suas duas próprias mãos.

Ventoso

Ventoso

E eu, quem sou? Prazer, meu nome é Ventoso. Aham, Ventoso. Sou nada mais, nada menos do que o primeiro brinquedo no qual o Bento tocou conscientemente (conscientemente, isso é importante) com suas duas desajeitadas mãos. Claro que virão outros, como a Centopéia, dizer que foi nela que o Bento tocou primeiro. Nãããão foi. Não acreditem nessa impostora. Foi em mim, em quem vos escreve agora, no Ventosinho aqui, que o Bento inaugurou seu tato. Bom, fui dado de presente ao Bento justamente pela Samanta e pelo Juliano, seus dindos, e meu nome é este porque eu tenho uma enorme ventosa na minha base, o que me permite ficar grudado em quase qualquer superfície da casa. Essa é, portanto, minha primeira virtude: adapto-me facilmente. Depois disso, colocam a criança, neste caso, o Bento,  na minha frente e ele fica girando três astes de plástico presas bem no meio do meu corpinho. As grandes atrações são os simpáticos animaizinhos coloridos que ficam na ponta de cada uma das minhas astes: o tucano, a borboleta e o macaco. As três astes giram como num catavento e os três bichinhos coloridos também contornam o seu próprio eixo. Manero, né? As crianças dessa idade, da idade do Bento, adoram.

Bem, devidamente apresentados, eram estas as novidades que eu tinha pra contar pra vocês. Que eu, o Ventoso, sou o mais novo amigo do Bento, e que o Bento, o filho da Ana e dos Luís, acaba de descobrir que, além de chorar, de mamar, de dormir e de adestrar sua língua, agora pode usar suas duas e poderosas mãos.

Juliano RigattiO Ventoso e o Bento
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Meu medo de Jason

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Eu me rolava na cama aquela noite. Eu era uma criança. Uma criança assustada. Quase via vultos de uma pessoa enorme andando pela casa, decidindo se entrava no meu quarto, enquanto eu me virava de um lado pro outro com o coração apertado. Eu tinha medo. Medo de que ele viesse para me pegar e me machucar com a sua brutalidade. Medo, muito medo eu tinha.

Já devia ser bem tarde, todos dormiam, minha irmã inclusive, e eu resolvi fazer uma promessa. Pra poder dormir. Não sei bem pra quem foi a tal promessa. Só lembro que prometi nunca mais ver Sexta-feira 13. Nunca mais. Em troca, só queria dormir. Queria que ele e sua sombra gigantesca fossem embora e me deixassem dormir um sono tranquilo. O sono tranquilo de uma criança. As cobertas taparam todo o meu pequenino corpo e adormeci.

Passou um bom tempo.

Era uma noite de temperatura amena e algumas pancadas de chuva em Porto Alegre. Segunda-feira passada. Ventava bastante. Oitos pessoa, a escuridão e dezenas de poltronas vazias faziam-me companhia naquela sala de cinema. Eu estava inquieto. E a ansiedade em revê-lo gelava meu estômago vazio. A promessa estava sendo quebrada: eu havia voltado ao Cystal Lake e Jason e eu nos reencontraríamos. E foi bacana.

Escutar aquela trilha de suspense dizendo algo como “ki-ki-ki-ma-ma-ma” foi como voltar no tempo. Deram saudade a mascara de hockey, os atalhos na floresta que só ele conhece e os jovenzinhos sexys, louros e alegres. Senti falta do gato. Aquele que, na cena da jovenzinha loura apavorada, sai repentinamente do armário dois minutos antes de ela morrer e dois minutos depois de ela ter transado.

Jason está mais veloz e menos misterioso. Mas isso é bom, não é critica, não. Conheci a sua casa, seus brinquedos, sua cama com seu nome gravado na cabeceira e o seu porão. Um porão. Onde é avisado, com os bater de latas, da presença de algum jovenzinho forasteiro e louro na floresta, que fica a beira do lago em que, ainda criança, afogou-se, e onde viu sua mãe ser morta por uma monitora negligente.

Não sei, a câmera pode tremer, o ator pode trocar de roupa três vezes na mesma cena, eu não percebo nunca um erro num filme Sexta-feira 13. Aliás, eu não percebo também a minha fome e o tempo passar.

De tensão, minhas costas ainda estavam empurrando o encosto da poltrona pra trás quando os créditos começaram a subir e as luzes acenderam-se de supetão. Você sabe o que acontece, né, quando alguém vai com muita expectativa ver um filme? Não, eu nunca me decepciono com Sexta-feira 13. Nunquinha.

E a sensação de que o filme vai junto com você embora do shopping? Já passava das onze da noite e eu sozinho. Jason estava em cada canto daquela praça de alimentação deserta. Nas trevas do corredor escuro dos sanitários, lá estava ele e a sua máscara bege e suja me cuidando. O vento na rua parecia cochichar no meu ouvido: ki-ki-ki-ki-ma-ma-ma-ma-ki-ki-ki-ki-ma-ma-ma-ma. Dei a volta no estacionamento até chegar no carro. Eu a passos largos e ele me vigiando. Podia jurar.

Só se eu pensar muito lembro de ter dado ré, encaixado o rádio e me mandado dali. Quilômetros a frente, um Uno velho branco trafegava devagar na pista lateral. Um Uno branco e pesado. Era ele. Só podia ser ele. Jason devia estar guiando aquele Uno Mille branco. Eu podia apostar. Estava só aguardando eu ultrapassá-lo para tirar o braço pra fora da janela e arremessar seu machado velho no meio das minhas costas, transpassando o banco do carro. Como fez no filme quando matou aquele jovenzinho negro.

O senhor baixo e careca do Uno Mille deve ter ficado preocupado com a minha velocidade e desconfiança quando o encarei. Não era o Jason. Essa tinha sido por pouco.

Liguei a luz alta como sempre faço ao chegar em casa à noite. Diminui o risco de eu ser surpreendido por algum mal-intencionado escondido nas folhagens dos vizinhos. Naquela noite, só um malfeitor podia aparecer do outro lado do meu pára-brisas molhado. O Jason. Mas ele não pôde. Também! Quase não lembro como fui parar dentro da garagem e pouco mais tarde, dentro de casa. Aparentemente, são e salvo.

O melhor de tudo? Ele não morre no final do filme. Não, isso não é o melhor. O melhor é que, quase vinte anos depois, daquela noite de segunda-feira, eu voltei a sentir medo do Jason. O mesmo medo. A mesma sensação de que não há saída. Mesmo que eu corra, que me esconda atrás das árvores daquele bosque, que grite pelos outros – que certamente já devem estar mortos – ele virá para acabar comigo. Para esconder meu corpo de modo que nem um enterro digno eu terei.

E isso é muito bom.

É bom quando no lugar das preocupações reais da vida, dos pepinos reais do trabalho, dos desentendimentos reais dos relacionamentos, você sente medo do Jason. Só do Jason. Queria poder escolher ter medo só do Jason e da sua mão pesada. Poder esquecer de todos os outros medos e só correr do Jason; dar luz alta na frente de casa e procurar apenas por sua silhueta apavorante; procurar saber dos meus amigos só por causa da sensação de que Jason os pegou; chamar minha mãe para uma conversa no quarto só para que ela acenda a luz e mande pra longe aquele gigante malvado.

Quando deitei na cama aquela noite, não fiz promessas. Só lamentei que Jason não aparecesse. Quase chamei por ele. Mas acho que nunca mais virá me apavorar e tirar o meu sono. É realmente uma pena. Lamentavelmente, acho que nada que eu prometa me isentará das preocupações reais desta dura vida de adulto.

Juliano RigattiMeu medo de Jason
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A lição dos Amigos Secretos

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Prometam uma coisa. Uma só coisa. Seja no trabalho, entre os amigos, no futebol do marido, na creche da filhinha ou com a família, prometam somente uma coisa neste fim de ano: participem e valorizem os Amigos Secretos – ou os Amigos Ocultos, se preferirem.

Mais que isso. Façam isso não só neste mês. Valorizem-nos para todo o sempre.

Há uma boa razão. O Amigo Secreto, na sua forma original, lá na nossa infância, no deixou uma fundamental lição. E por isso, pelo legado que ele nos deixou, devemos reverência a ele. O Amigo Secreto nos ensinou, desde cedo, o significado da mais importante mazela da nossa sociedade: a injustiça.

Sei que é quase inacreditável, mas eu lembro como se fosse hoje.

Nunca mais um Amigo Secreto foi o mesmo desde o dia em que um boné verde fosforescente da Colcci – à época em que qualquer um comprava qualquer coisa da Colcci – veio ofuscar a minha visão de guri da quinta série do primeiro grau. Ele era horrível, detestável e, sobretudo, vexatório. Eu não podia acreditar que teria que agradecer e dizer que havia gostado daquele presente estúpido e de inacreditável mal gosto. Eu não podia crer nisso. Pela primeira vez em todas a minha curta vida até ali eu estava sentindo o gosto amargo e repugnante da injustiça.

Eu que havia comprado um presente de qualidade, escolhido a dedo, daqueles que se escolhe pensando na pessoa, sabe? Eu mesmo tinha sido injustiçado. Por que aquele boné estava ali, na minha mão? O que ele tinha a ver comigo? O que ele queria de mim? O que ele queria me ensinar? Para que servia aquele objeto bizarro e brilhoso senão para ensinar-me a dura lição da injustiça?

Não suportei.

Desejava dizer à Monique, acho que esse era o nome da minha algoz, que eu não gostara do presente. Que, na verdade, eu o detestara. E, amigos, eu o disse. Meio acanhado, mas disse. E dois dias depois ela veio colocar na minha mão a nota fiscal que me autorizada trocar o tal boné. E assim foi feito.

E sei que isso já aconteceu com todo mundo. Todos, invariavelmente todos, já foram injustiçados na infância por um inocente e bem intencionado Amigo Secreto de final de ano. Todos.

Mesa grande, torta no centro, cachorrinho-quente, refrigerante em garrafa de vidro, brigadeiros, branquinhos, pasteizinhos dourados, cores e mais cores. Em um instante, tudo ia à ruína. Todo o encanto da festinha de final de ano e da surpresa que aguardava o momento das revelações, tudo desmoronava. A realidade se transfigurava enquanto você abria o pacote de presente e de dentro dele surgia uma dessas criaturas repugnantes. Porque era isso mesmo que eu via quando rasgava o papel colorido e avistava um par de meias, ou um baralho, ou um dominó, ou uma carteira do He-Man com figuras reluzentes que se alternam com o movimento do objeto. Repugnantes, era isso que eram aqueles presentes.

Na maioria das vezes, eu deseja, como toda a energia do meu ser, estar com o presente que eu mesmo havia dado. Sem sombra de dúvida que ele era melhor. Enquanto escolhia o presente, eu ainda conservava a empatia, o carinho e a preocupação com a satisfação do outro. Mas eles não. Eles nunca me respeitavam. Eu era, pela primeira vez, um injustiçado.

Mas teve uma vez, uma única vez, que eu também servi deste veneno. Mas sem culpa.

Estávamos às vésperas da festinha da escola e eu ainda não tinha comprado o presente do Luiz Fernando. Na real, não imaginava o que dar. Minha mãe veio com a solução. Como ela estava indo para o centro, passaria em uma loja qualquer e compraria uma camiseta. Topei.

“Mas nós?!”, eu reivindicava uma explicação convincente da minha mãe. Por que ela havia escolhido aquela camiseta que ensinava a fazer nós de marinheiro? Por que, meu Deus? Surf, futebol, marcas, mulheres, tudo bem, mas nós?

Luiz tinha a cara da injustiça no dia seguinte. Certamente, ele se fazia a mesma pergunta que eu havia feito à minha mãe há um dia. Por que nós? Com que cara eu olharei para as pessoas quando, mesmo sem ser um marinheiro, eu estiver vestindo uma camiseta que ensine a fazer nós?

Mesmo sem o peso da culpa, eu havia dado seqüência àquela sina. A de que os Amigos Secretos todos, sem exceção, surgiram na vida das crianças para que elas, desde cedo, aprendessem o gosto amargo da injustiça.

***

Não, gente! Há muitos anos que isso vem sendo diferente. O Amigo Secreto da empresa que revelamos esses dias, por exemplo. A Bel acertou em cheio. 🙂

Juliano RigattiA lição dos Amigos Secretos
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Feliz Dia das Criancas!

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“Nenhum rio chega ao mar se não respeitar os limites impostos pela natureza.”
Ouvi essa já no fim do domingo, 12 de outubro.
Lembrei de correntezas, de enchentes, de encostas sendo invadidas pelas força das águas. De famílias desabrigadas.
Pensei também em águas mansas seguindo seu curso, em pescadores indo buscar seu sustento, em peixes saltando, enquanto o sol reflete o brilho de suas escamas.

***

Estou convencido de que ser um exímio gestor dos limites do filho é o melhor presente que o pai pode dar a ele. Não só hoje.

Juliano RigattiFeliz Dia das Criancas!
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