Porque o Inter vence os Grenais

13 comments

Posso ver o aparelho nos dentes do Luiz Fernando reluzir. Faz uma década e meia já. Eu jogava na escolhinha de futebol do Inter (sim, do Inter) e naquela tarde fomos treinar no Gigantinho por causa da chuva. Batemos bola na quadra e também em volta dela. Até na arquibancada tinha gente fazendo os exercícios com bola que o professor havia recomendado. No final, fomos todos reunidos num lugar sem luz elétrica, com pedaços de claridade no chão e nas mobílias, refletidos pelas frestas das basculantes. O aparelho dental do Luiz reluzia com o reflexo do sol do fim de tarde. Eu podia imaginar o quanto aquele momento representava pros outros guris pelo silêncio que eles faziam. Nem no saco de bola eles ousavam tocar. Tudo o que mais gostavam de fazer ficara em segundo plano. O mais importante era o anúncio que o professor faria. Da lista do semestre com atletas que comporiam a seleção do Inter. A convocação pra seleção era o momento mais grandioso. Nem o gol de virada no final do jogo-treino, nem o título de goleador do campeonato interno, nem o elogio do pai que assistia da arquibancada. Nem. A convocação para a seleção era o que havia de mais aguardado. Ela separava os fora de série dos medianos e medíocres. Premiava os talentosos e colocava os esforçados à margem. Mas tinha uma característica, uma só, que me diferenciava do Luiz Fernando mais do que todas as outras, e que seria decisiva para que o seu nome composto, com seus dois sobrenomes e mais o Júnior do final fossem sonoramente pronunciados naquela tarde: a auto-estima. O Luiz era um cara que acreditava em si, e que jogava bem também por causa disso. Jogava com as mãos na cintura, ora arrumando as meias, ora dando um grito de ordem aos companheiros. Posso vê-lo fazendo isso. Chamavam-no de Dunga. E com razão. Era mais que um guri que tratava bem a bola, o Luiz era um líder dentro de campo.  As coisas aconteciam ao natural para o Luiz. O chute com direção, o lançamento à distância, a roubada de bola sem falta, o gol e a convocação para a seleção da escolhinha. Eu? Eu era só um mediano, que sequer acreditava que podia se sair melhor. O Luiz não era um craque. Chamavam-no de Dunga, ora. O Luiz tinha auto-estima. Foi pra seleção, mudou de horários e eu perdi minha carona para sempre.

O que faz o Inter ganhar os Grenais não é nada mais do que a sua tremenda auto-estima. Méritos para Fernando Carvalho, o atual vice-presidente de futebol, e presidente do Inter quando o clube sagrou-se Campeão de Tudo. Isso, de Tudo. Em 2006, ganhou a Libertadores e o Mundial da Fifa. Em 2007, a Recopa e, em 2008, a Copa Sulamericana. Por causa da sequência de títulos importantes — e internacionais — botou o departamento de Marketing a trabalhar até que cunharam o tal predicado Campeão de Tudo. Não ganharam duas Libertadores como o Grêmio, nem quatro Copas do Brasil. Nem têm a maior torcida do Rio Grande do Sul, nem o título intercontinental mais antigo. Mas o título da Sulamericana, a desprezível Copa Conmebol no passado, credenciou seus publicitários a criarem o invejável Campeão de Tudo. Qual torcedor não quer torcer para um Campeão de Tudo? Quem, em sua rotina de trabalho duro não se sentiria, no fim da tarde, radinho na mão, o mais orgulhoso dos torcedores se o seu time fosse um Campeão de Tudo? Quem?

Voltando ainda à época do título mundial do Inter, lembro de um jantar promovido pela direção com motivos nipônicos. Nossa, o tal jantar foi o assunto por onde se andava. Pude ver fotos e fiquei impressionado. Há poucos dias, o mesmo Campeão de Tudo lotou o seu Beira-Rio para comemorar o centenário do clube. Trouxeram Ivete Sangalo e Zeca Pagodinho. Soube de gremistas que venceram o orgulho e deram o braço a torcer: os caras sabem fazer festa. Foi o que disseram. Eu disse o mesmo.

O que fez o Grêmio com seu título mundial em 1983 a não ser andar aos choros em um caminhão de bombeiros e dar entrevista no Jornal do Almoço (se é que foram)? O que fez o Grêmio ao vencer pela segunda vez a Libertadores a não ser barganhar junto a alguma Secretaria Municipal a autorização de pintar os cordões da calçada de parte de Porto Alegre de azul, preto e branco? O que fez o Grêmio de seu centenário, há setes anos, a não ser produzir camisetas comemorativas e adesivos que foram parar nos carros e nos cadernos de capa dura?

Se eu quisesse tentar justificar os erros administrativos do Grêmio, poderia dizer, com razão, que o Internacional foi campeão do título máximo do futebol mundial na hora certa. O Ronaldinho Gaúcho já começava seu declínio e o marketing esportivo começava a crescer. O Inter soube aproveitar o seu momento. E enriqueceu. Mas o Grêmio, com toda sua grandiosidade, foi um medíocre.

Cheguei a ter compaixão do Inter da década de noventa. Não ganhavam nada, coitados. Não queriam acordar das noites em que lembravam do célebre Célio Silva chutando grama e bola no meio do gol pra levantar a taça de campeão da Copa do Brasil de 1993. Figueroa e Falcão já realizavam testes na UFRGS para serem congelados. Ortiz, craque do futsal, era o único ídolo da massa colorada. Mas isso foi antes de serem Campeões de Tudo. O Inter hoje é um clube revigorado, camiseta branca de gola vê, barba por fazer, sarado e dono de si. É um clube invejável, com recursos, com jogadores que não erram passes, que fazem gol no Victor, que dão janelinhas, com centro-médios que batem e não levam cartão amarelo, com pontas de lança que vencem na corrida até zagueiros de seleção e que dão passe com a nuca. O Inter encontra no interior de qualquer estado brasileiro um centroavante que não erra gol e que é vendido em alguma janela por milhões em meses. O Inter aplica dois 8 a 1, dois anos seguidos, nas finais de um campeonato. O Inter é tudo isso e muito mais: é um time que ganha Grenais. Que amedronta seu único rival e seus torcedores só de entrar em campo. É admirado pelos árbitros, pelos cronistas e pelos narradores radiofônicos. Os gritos da torcida viram música e vão parar em CDs. O Internacional não é um clube invencível, mas — mas! — é um clube com auto-estima. Como era o meu amigo Luiz Fernando.

O Grêmio perde seus Grenais simplesmente porque admira a vaidade de seu adversário e duvida de sua própria capacidade. O Grêmio é um clube submisso, que deixou de ser Campeão Brasileiro em 2008 porque achou que não merecia. Virou um clube humilde o meu Grêmio. Não será São Francisco de Assis o padroeiro daquela capelinha que puseram lá no Olímpico para os gremistas orarem e pedirem perdão por suas vitórias e goleadas pecaminosas?

E ainda dizem que os treinadores é que não têm a cara do Grêmio. Convenhamos. Desde que Dinho e Felipão foram embora e o Inter virou Campeão de Tudo, é o Grêmio que não tem mais a cara do clube pelo qual me apaixonei. O Grêmio não precisa de treinadores com seu semblante, nem um Dinho à frente da zaga, como ouvi desculparem-se pelo último Grenal perdido. O Grêmio, o meu Grêmio, precisa é de um terapeuta. E este terapeuta pode ser a conquista de um título. Que seja o Gauchão. E em cima do Inter e de toda sua auto-estima dos infernos. O Grêmio precisa de algo bem forte, com uma pedra de gelo, que o tire dessa crise de identidade, dessa frouxidão, que o recoloque de pé e orgulhoso de sua história e de seus seguidores. O Grêmio precisa de algo que resgate a sua poderosa auto-estima.

Juliano RigattiPorque o Inter vence os Grenais
read more

Uma verdade sobre o futebol

2 comments
Veron não amarelou

Veron não amarelou

Dia desses ouvi um dos nossos oportunistas comentaristas de futebol afirmar que a função mais importante de um técnico de futebol é animar seu elenco. É só mais uma opinião no momento oportuno em que o time voltava pro segundo tempo demonstrando nova disposição, pensei.
Estava enganado.

Como todo guri brasileiro, com minha pouca idade, eu desejava ser um jogador de futebol. E não só desejada. Posso dizer que investi em mim mesmo. Fiz escolhinha de futebol, acordava cedo no sábado pra jogar bola quase que profissionalmente. Posso sentir o cheiro daquele ginásio na Vila Ideal, em Canoas. Fiz mais: joguei na escolhinha do Grêmio e, antes disso, — acreditem! — na do Inter. Aproveitava a carona do avô de um colega do primeiro grau e lá ia eu, de vermelho e branco, tentar a vida nos gramados sem grama da capital gaúcha. Como era do lado do hipódromo, eu acho q eles botavam os cavalos a alimentar-se no nosso campinho durante a noite. Só podia. Aquele areião todo. Só podia.

Agora, a verdade: eu nunca joguei nada. Não que não soubesse jogar, não que não cobrasse bem um escanteio, não que não batesse na bola razoavelmente bem. Não que eu não driblasse. Mas eu amarelava. Confesso pra ti que eu amarelava. Eu sentia, abaixo da nuca, o peso da expectativa. Do treinador, do meu pai. A minha expectativa. E de quem quer que seja que esperasse algo de mim.

Lembro de um gol, de ter marcado um único gol em todo meu tempo de escolinha. Somando Grêmio e Inter. Um golaço. Eu no meio da área, o cara cruzou no chão, bola rasteira, pulou num, pulou noutro morrinho de terra até que eu evitei que ela passasse para o companheiro do meu lado direito. Dominei-a e bum!, ela estufou a rede, no alto da goleira. Devem ter sido mais os meus gols, mas por alguma razão, pelos lances perdidos, pela bola que mordia e pela chuteira q não deixava a bola dormir no meu pé, por tudo isso, eu esqueci de todos os outros gols que fiz.

Mas o que me faz achar que revelo aqui uma verdade sobre o futebol é uma única lembrança: a de entrar em casa ofegante, depois de uma pelada no asfalto da frente casa, goleiras de chinelos, e jurar para quem pudesse ouvir que eu era, simplesmente, o Viola. Ele mesmo. Aquele centroavante que rebolava e que conquistou a torcida do Corinthians com um gol espírita em final de campeonato, em que a bola, saindo ao lado da trave, no alto, voltou ao campo pelo pé de Viola e Viola, perna espichada no ar, botou-a nas redes. Acho q foi num Corinthians e Palmeiras. Numa final. Imaginem! E eu era exatamente esse cara, o Viola. Eu não jogava mal. Não me destacava, mas não jogava mal. Tinha bons fundamentos, pouca velocidade, boa liderança e nenhuma tolerância em campeonatos da Igreja em que o meu time era roubado. Era quase um Tcheco, portanto. Não um Veron, mas um Tcheco. E como o Tcheco, podia agora estar ganhando algumas dezenas de milhares de reais e já estar planejando que parte do mundo iria conhecer quando parasse de jogar bola. Eu podia estar jogando pelo Grêmio e ouvir a Geral cantar meu nome. Mas não estou.

Eis uma verdade sobre o futebol: futebol é cabeça, é psicológico.

E aqui está a explicação para o sucesso do técnico motivador, para eu não estar hoje ouvindo a torcida do Grêmio gritar meu nome e para o Cruzeiro não ser o campeão da Libertadores nos próximos 12 meses: futebol é ca-be-ça.

Ou não fez diferença o time argentino do Estudiantes não desistir do jogo enquanto perdia, partir pra cima, fazer dois gols e sagrar-se o atual melhor time sulamericano de 2009? Mineirão com 80 mil hostis torcedores? Fez todinha. Te digo que a cabeça de cada um daqueles argentinos fez todinha a diferença.

Há, portanto, uma única desigualdade entre eu e o Estudiantes, campeoníssimo, com passagem já comprada pra Dubai: é que eu amarelei.

Juliano RigattiUma verdade sobre o futebol
read more