Porquê os gaúchos amam a Freeway

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Sem exageros. Vivi um verdadeiro pesadelo na noite do dia 23 de fevereiro deste ano, quando voltava para Porto Alegre das minhas férias em Santa Catarina. O cenário foi a BR-101 e os cerca de 400 quilômetros que separam Florianópolis do início da BR-290, a Freeway, já no Rio Grande do Sul. Saímos da capital catarinense às seis da tarde. Com o fim do horário de verão, a noite chegou cedo, pouco depois das sete horas, e junto com ela veio a chuva. Fraca na maioria das vezes, só aumentada pelo volume de água arremassada pelos pneus dos caminhões que me fizeram companhia ao longo da viagem. Não vou reclamar das obras inacabadas da 101. Com tanta pressão da sociedade e da imprensa, deve haver alguma razão bem plausível para os atrasos. Deve haver. A principal razão deste  meu manifesto é a inacreditável ausência de sinalização básica de trânsito ao longo de todo o trajeto. Não, não há exagero aqui. Como disse, o sol se foi lá pelas sete da tarde. Junto com ele, também se foram os sinais luminosos do asfalto, os postes de iluminação e, na maioria das vezes, as listras que delimitam as faixas de trânsito. A minha sorte é que os demais veículos e seus faróis acesos permaneceram. Graças a muitos deles, é que estou aqui, são e salvo. (Se você estava voltando de Floripa para a capital gaúcha neste mesmo horário e está me lendo agora, muito obrigado, viu?)

Se não fosse dramático, seria libertador. Há trechos da BR-101, à noite, nos quais você pode trafegar onde quiser: mais pra direita, mais pra esquerda, no centro, no acostamento, no matagal. Sem pintura que possa ser vista, você é um motorista livre. Num dado momento, eu me senti tão livre que só fui interrompido por dois faróis altos de um caminhão que vinha em minha direção e me avisava que eu estava na contramão. A sensação de liberdade é tamanha que eu por pouco não peso meu veículo de passeio. Isso mesmo, eu e outro desorientado usuário daquela estrada entramos junto numa área de pesagem de caminhões. Só não fomos atendidos porque resolvemos não parar e nem diminuir a velocidade num local onde também imperava o completo breu. Os mais experientes dirão: “mas e por que não ligaste a luz alta?”. Juro que tentei. Mas entre diminuir o meu risco de acidente e cegar o irmão que vinha no sentido contrário, preferi seguir minha ideologia cristã e tratar o próximo como eu gostaria de ser tratado. E os engenheiros de trânsito dirão: “mas e as placas grandes e laranjas que colocamos para avisá-lo dos desvios?” Ah, sim, as placas. É estarrecedor que haja maior preocupação das autoridades em avisar onde não é permitido trafegar do que o contrário. No meio da noite, com chuva, o que você mais quer saber é por onde IR e não por onde NÃO IR. Ou estou errado? Agora, teve um momento que, embora não tenha relaxado um minuto sequer, eu sorri. Havia — eu juro que havia — no meio do nada, no escuro, sozinha, iluminada pelos meus tímidos faróis, uma placa que dizia: “Obedeça a sinalização”. Juro, eu sorri.

Você que lê estas linhas neste momento pode ver que cheguei ao meu destino diferente de quando parti do outro Estado. Ao invés de morto, como pensei que seria referido no jornal do dia seguinte, me encontro com as energias renovadas depois das férias, indignado com a situação absurda da BR-101 e com uma nova e elucidativa certeza nesta vida: hoje entendo porquê todo gaúcho ama a Freeway.

Todo ser humano nascido na última divisão do mapa político do Brasil, ao extremo sul, é conhecido por seu antagonismo. Não, o prefixo não faz nenhuma referência a animais. Quero dizer que somos reconhecidos (também por nós mesmos) como seres habituados com duas forças que se opõem. A mais famosa delas é a dupla de times de futebol. A outra vem da histórica forma de conduzirmos a política por aqui. E tem também a Guerra dos Farrapos, que colocou de um lado os sulinos e de outro o Império. E uma bem contemporânea é a que envolve o Rio (Lago?) Guaíba. Resiste por aqui uma estranha ideia de que os porto-alegrenses devam viver eternamente separados do seu mais belo cartão postal por um muro. Essa, ninguém entende.

Ou seja, minha gente, estamos acostumados com as polêmicas. E um povo assim, teimoso em ser partidário deste ou daquele lado, quando escolhe sua posição, o faz de forma vigorosa. Quero dizer que também temos consensos por aqui. Ah se temos. Um deles é a estátua do Laçador, que recebe nossos visitantes bem na entrada da cidade. Outro, é o pôr-do-sol do mesmo Rio Guaíba: há quem prove que veio de alguma universidade de Massachusetts, nos Estados Unidos, o veredicto de que ele é o mais belo do mundo. Há também a bombacha, o hino riograndense, o chimarrão e uma infinidade de coisas igualmente glamourosas. Mas, por fim, indo logo ao epicentro deste artigo, digo-vos que uma das grandes convicções do gaúcho é o seu amor pela Freeway, a BR-290, que liga Porto Alegre às praias do Estado. Isso, há um povo neste país que tem em seu coração uma rodovia.

Mas não porque por ela todo gaúcho já passou ansioso para rever as namoradinhas da orla; não pela sardinha frita pescada na ponde de Imbé; não porque queria rever os locais de gravação de Houve Uma Vez Dois Verões, do Jorge Furtado; nem porque não via a hora de sentir de novo, depois de um ano de estudos, a agradável brisa apelidada de Nordestão. Por nenhum desses motivos (e outros inúmeros e hilários que estão no Pegunte ao Crepe) a Freeway é idolatrada pelos gaúchos. Por nenhunzinho deles.

O gaúcho ama a Freeway porque ele conhece a BR-101.

A ama pela sua qualidade. Porque sabe exatamente quantos minutos são necessários para percorrê-la; porque seus  congestionamentos são igualmente calculados; porque nela pode botar cenzinho por hora; porque ela é sinalizada; e porque, à noite, ela é muitíssimo bem iluminada.

Na noite do dia 23 de fevereiro, a noite do meu pesadelo, quando os pneus dos meu carro tocaram a Freeway, o dia amanheceu às onze da noite. Eu sorri pela segunda vez porque agora estávamos, eu e meu automóvel, limitados por duas faixas de sinais luminosos, presos aos asfalto. Eu podia ter certeza por onde andava. Eu podia antever, no tempo certo, a existência de uma curva, de um acesso, de um retorno ou de um local para paradas de emergência. Passei a sentir meus ombros novamente, até então tencionados pelo temor de dirigir na BR-101. Meu pé esquerdo também existia, percebi. Ao final dela, no pedágio, quis pagar mais do que R$ 3,70, mas não permitiram.

A Freeway, este extenso pedaço de asfalto, que nos liga às mais ensolaradas lembranças do verão, só é idolatrada pelos gaúchos por causa do antagonismo de seu povo. Porque aqui todos amam o oposto daquilo que odeiam. Tão somente por isso. Amamos a Freeway por causa da existência de uma rodovia chamada BR-101.


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PS.: Na boa, nunca tive pretensão alguma que um texto meu virasse uma corrente de e-mails. Nunca mesmo. Mas esse aqui, pelo interesse público que tem, por causa de sua causa, merecia. Tomara que alguém o copie e o mande para os e-mails de todos os seus amigos. E que a corrente cresça, cresça, cresça, e chegue à até à presidenta Dilma. Amém.

Juliano RigattiPorquê os gaúchos amam a Freeway
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