Vá ao dentista regularmente

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Sempre achei que salas de espera de dentista tinham de ter coisas mais interessantes que revistas velhas de fofoca.

A porta foi aberta de supetão.

– Ai, tô atrasada. Também, tá uma confusão lá em Novo Hamburgo.. tão instalando o trem, sabe? – ela entrou sala adentro, desculpando-se, esbaforida. Cabelos oleosos, rosto e sombrinha judiados, trajes simples. O aparelho nos dentes era o único indicio de que ela cuidava de si. Mais tarde vi que a pista era falsa.

– Que horas são?

Estávamos a sós. Fiz que não tinha relógio.

– Umas quatro e cinco, quatro e dez – respondi.

– E que horas é a tua?

– Agora, às quatro.

Ela sentou-se.

– Então a minha é às quatro e meia. Ainda bem. Vai pôr aparelho?

– Não, só revisão. Já tirei.

– Eu é mais três anos com este. Fui assaltada, sabe? Me deram uma coronhada na boca, afrouxou tudo aqui na frente. Tive que fazer tratamento de canal e colocar aparelho. Mais três anos…

– É, é brabo. Quer dizer que estão reformando o trem lá em Novo Hamburgo, é? – o jornalista aqui já queria informação.

– Sim, tão levando o trem de São Leopoldo pra lá. Tá indo ligeiro a obra, sabe? Eu queperdi meu sítio..

– Perdeu, é? Tu tinha um sítio em Novo Hamburgo?

– Sim, e criava égua, cavalo, porco e galinha. Daí tive quevender pro trem passar lá. Agora, tô morando num apartamento pequeno, sabe? Financiado pela Caixa. Esse mês a luz deu 12 reais só, acredita? É pra baixa renda. E isso que eu tenho geladeira, televisão, carrego celular, tenho freezer.

– Barato mesmo, 12 reais de luz é barato mesmo.

– É, mas eu sinto falta do meu sitiozinho. Eu sabia até caçar! Caçava ratão do banhado. Com um tipo de ratoeira. E é tri bom! Mais limpo que galinha, sabia? Eles não comem porcaria, só comem.. só comem.. ai, sabe? Comem coisa limpa.

Concordei, claro. Mas acho que deu pra disfarçar minha falta de intimidade, digamos assim, com o assunto.

– Eu não gosto de rato também. Tinha nojo daqueles ratões pretos, gordos. Mas depois que tu tira a pele, aparece a carne bem branquinha. Tri bom.

Não sou tão fácil de ser convencido, moça.

– O pessoal de lá adora. Tem pra vender por tudo lá em Novo Hamburgo. Eu caçava eles pequenos, botava numa gaiola, daí engordava e depois comia. Tri bom. Tê te dizendo.

Mas eu não estava duvidando. Por Deus que não.

Meu dentista interrompeu minha imersão na culinária urbana. Cumprimentou-me e convidou-me para entrar. Quase ignorou a presença da moça. Só entendi o descrédito depois.

– Que histórias tem essa tua paciente – comentei, porta já fechada.

– Ainda não descobri o nível de loucura ou de sanidade dela.

Lamentei que aquilo tudo não fosse verdade.

– A mãe dela, uma senhora distinta aqui de Porto Alegre, que paga a consulta. Acho que é doida essa moça. Ela me conta que faz ponto no Mercado Publico e como não aguenta sem sexo todo dia, vai visitar o marido na cadeia pra transar com ele.

Àquela altura, eu já o ouvia de boca aberta. Bem que podia ser por causa de todo aquele enredo, mas era só em obediência ao pedido do doutor. Ele examinava minha dentição e minha mordida.

– Outro dia, disse que não entendia a polícia. Prenderam-na porque roubou, mas quando matou o primeiro marido não fizeram nada.

Eu gemi pra dizer-lhe que eu o ouvia.

– Quer saber mais?

Resmunguei de novo.

– Uma paciente tava deitada aí onde tu estas. Foi esses dias. De repente, baixou as calças até esta altura aqui.

Tocou no meu joelho.

– Olha como tô magra, doutor, ela insinuou. Eu olhei pros olhos e perguntei onde estava o marido dela.

Acho que arregalei os olhos para o meu dentista católico. Era um misto de surpresa e de admiração pelo seu bom senso. Ele sorriu, orgulhoso de suas histórias.

Eu fui embora. Com a certeza de que inspiração é uma desculpa de quem não vai a dentistas. Escritores que cuidam de seus dentes não precisam de tanta imaginação assim.

Juliano RigattiVá ao dentista regularmente
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