Vencedores

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Por ocasião da celebração dos 60 anos do fim da 2ª Guerra Mundial, lembrei deste texto que escrevi em novembro de 2003. Resolvi republicá-lo. Parece que isso representa dar a ele vida novamente. Isso tudo porque é exatamente assim q continuo pensando.

***

Vencedores
11/2003

Não tem mais como ignorar mesmo. Todo dia, além de mais um dia na tua, na minha vida, é mais um dia de front. Estamos diante de mais uma guerra. Eu e você somos contemporâneos da Guerra do Iraque e a merda é que parece que isso pouco tem a ver com a gente. Todos os meses, dos oito que já se passaram, mais e mais soldados perdem a vida. Muitos para o inimigo e alguns para a própria vida. Segundo pesquisa divulgada na revista Veja da última semana de outubro, tem-se notícia que treze soldados americanos já se suicidaram no front, desde o início da ocupação americana no Iraque. A vida tem os seus limites e o front de guerra propõe a eles o pior de todos os desafios. Os que sobrevivem e conseguem levar uma vida decente, são considerados vencedores. Vencedores de um gesto imbecil e covarde de cobrir com sangue e trapos camuflados os séculos da História.

Nesses últimos dias, estou envolvido em um trabalho pra faculdade. Minha tarefa é entrevistar alguém e contar, depois, a sua história de vida.

Berthold Georg Hentschel é meu vizinho. Tem 77 anos e durante um deles também esteve no front. Foi combatente alemão contra as tropas russas durante a Segunda Guerra Mundial. Além de uma grande e interessante história de vida, tem muitas outras histórias que, enquanto vai reconstruindo na memória, vão desconfortando quem o escuta:

“Lembro que eu tinha que patrulhar na frente. Todo mundo dorme, mas sempre tem que ter o sentinela pra cuidar. Sentinela em posto avançado… quer dizer, não é lá na trincheira, é bem mais pra frente, quase de cara com o inimigo. Aí a gente fica lá, começa a pensar… sonhar… tem alucinações… começa a ver fantasma…

Me lembro que, de repente, vinha uma barulheira lá da frente… parecia uma cavalaria… (fez barulho) cada vez mais alto, cada vez mais alto… Aí eu pensei: ‘Tenho que tocar o alarme’. Saí correndo, toquei o alarme, ligeiro… soou o alarme, tiraram todos da cama , armaram tudo e quando o barulho chegou perto era só um bando de cavalos de criação, não era uma cavalaria…”.

Seu Berthold nasceu em Porto Alegre, em 1926. Com treze anos de idade, viajou com os pais alemães e a irmã a bordo de um grande transatlântico. Foi morar na Alemanha. Internado num hospital de lá, por causa de uma meningite, ficou sabendo que a guerra havia começado e que o treze da sua idade era o número do azar. O médico havia tirado as esperanças. Ele não se curaria.

Recebeu uma educação regrada e tomada por disciplina. Logo perdeu a fluência do português, habituando-se a língua alemã. Até hoje, tem dificuldade com o nosso idioma. Algumas vezes, primeiro ele diz em alemão, então pensa, traduz para o português. Só então nos entendemos. Aos 18, foi recrutado como soldado do exército alemão. Comeu o pão que o diabo amassou. Isso quando o pão era suficiente para todos.

“Era tão pouca comida que eles cozinhavam capim. Comiam capim. Uns saíam desesperados e mastigavam até couro de cinto… Muitos morreram lá… Estouraram também doenças, cóleras, essas coisas. E como tinha muita gente morta, o recurso era empilhar os mortos… aí tinha um monte alto, todos duros, que nem uma pedra… Eles atiravam um que outro lá pra cima e eu dormindo ali do lado…”

De um campo de concentração na Bélgica, onde foi prisioneiro de guerra dos americanos, foi liberado e teve de ir grande parte do caminho a pé e outro tanto pedindo carona até chegar ao leste da Alemanha, de domínio dos russos, onde moravam seus pais. Dado como morto, porque as correspondências não chegavam mais, Berthold foi recebido com alegria pelos pais e a irmã, que também muito tinham sofrido durante esse último ano.

Ele nunca parou. A vida nunca lhe impusera trincheiras intransponíveis. Vencida a meningite, seu Berthold estudou desenho industrial e formou-se projetista. Logo estava na fábrica, tinha que cumprir três anos de serviço em compensação pelos estudos pagos pelo Estado. Foi chamado à guerra.

Salvo do front, chegou em casa, tirou a farda surrada e descansou dois dias. No terceiro já estava na fábrica de novo. Chegou no Brasil muito pobre. E imensamente rico porque a vida havia lhe ensinado muito nessas duas décadas.

Trabalhou até se aposentar. Casou-se aqui. Sozinho, ergueu a primeira casa de madeira e, anos depois, a atual casa de material onde mora com a esposa há cerca de 50 anos.

“É. Eu trabalhei três anos nessa casa. Chegava de noite do serviço, jantava. Como tinha a massa com cimento pronta, só botava água, virava e sentava duas, três carreiras de tijolos. E então ia dormir. No outro dia, trazia cimento… eu vinha de bicicleta, botava o saco atrás e empurrava aqui pra cima. E assim foi indo a casa… bem devagarzinho… devagarzinho… essas pedras mais pesadas eu puxei com duas cordas, uma em cada ponta, puxei, amarrei, até que tudo estava em cima. Assim foi indo a casa. O serviço mais brabo, que eu sinto até hoje, foi carregar cascalho, cimento e areia tudo aqui pra cima. Até a minha esposa já carregou. Essas pedras de granito… e não é as de hoje, pequenininhas… eram uns blocos grandes. Bom, essa casa tem quase 50 anos e não tem nenhuma parede rachada, nada… e não é tijolo furado… é maciço.”

Como ele mesmo diz, sua vida hoje é monótona. Deve ser porque não vê mais morteiros ou gente morta caída ao chão.

Seu Berthold é um daqueles vencedores aos quais me referia no início. Vencedores porque salvam da guerra algumas lições para a vida inteira. Acho que é assim mesmo. Vencedores são aqueles que refinam o momento adverso e encontram um belo aprendizado.

São também heróis aqueles que não conseguem. Aqueles que ficam pelo caminho, entre uma e outra granada. Entre uma e outra explicação da Casa Branca. São todos heróis.

Bom, ainda continuo envolvido com a matéria sobre o seu Berthold. Há muito ainda que se contar desta vencedora história de vida.

Por enquanto, ficam as muitas outras histórias contadas nas linhas e entrelinhas das matérias sangrentas do jornal de amanhã.

Juliano RigattiVencedores

2 comments

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  • Eduardo Beilner - 9 de maio de 2005 reply

    Gosto muito desde teu texto. Acho que já é a segunda releitura que faço.
    Guerra de verdade poucas pessoas viveram (como o Berthold), mas todos somos diariamente bombardeados por corridas contra o tempo, barulho urbano, propaganta alienante, ou pior por nossas próprias alucinações e devaneios…esses sim, são os piores morteiros!
    Por falar em devaneio, aí vai um poema que eu li na internet…
    “O amor é uma paixão e o jacaré é um pescoção.”

  • Jac - 10 de junho de 2005 reply

    abandonaste?

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