Para quem já amou ou já foi amado

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A tevê desligou no meio do segundo tempo da final do campeonato. A luz da sala se apaga. O filho havia chamado o pai minutos antes, que resolveu atender ao pedido. Naquela noite de quarta-feira nada seria mais importante que tomar a lição do pequeno Eduardo.

Enquanto Melissa deliciava-se com o único prato de feijão que fora possível cozinhar, o estômago daquela mãe doía. E já não era a primeira vez que Maria renunciara à passagem de ônibus que a levava ao tão sonhado supletivo para manter a filha saudável — e disposta para uma tarde inteira de aula.

A semana havia sido puxada, o corpo já reclamava por descanso. Mas Álvaro levantou-se e, violão às costas, pôs-se a caminho. Ia animar mais uma vez a tarde de sábado daqueles vovôs e vovós carentes de qualquer tipo de visita, de qualquer tipo de atenção.

Enquanto cenas como essas se repetem em nossa sociedade, muitos ainda confundem amor com vontade de estar junto, com sexo, com afago, com rosas vermelhas, com um coração vermelho, com serenatas.

Talvez Rodrigo, Melissa e aqueles vovôs e vovós nunca agradeçam o que aquele pai, Maria e Álvaro fizeram por eles. E um dia, felizes, talvez nunca se deem conta do bem que receberam.

Se você já foi amado, algum dia alguém se doou por você. Se você já amou, certamente já abriu mão de alguma coisa e sabe do que estou falando.

São os nossos sofrimentos, as nossas pequenas mortes cotidianas que contribuem com a felicidade do outro. E com a nossa.

Não basta gostar, não basta estar junto, é preciso abrir mão de prazeres, é preciso desrespeitar nossa própria vontade, nosso instinto, em favor do outro. Isso — e nenhuma outra coisa — é o amor.

A vaidade dos homens os separa. Só o amor é capaz de submeter a vaidade à gratuidade e unir casais, pais de filhos, voluntários de desconhecidos.

Quando e onde aprendemos isso?

Há dois mil anos, num lugar chamado Calvário (em aramaico Gólgota), atualmente na região de Israel, um país da Ásia Ocidental, situado na margem oriental do Mar Mediterrâneo. Naquele dia, um homem precisou aceitar uma morte injusta para nos ensinar o que significa o amor. Só uma coroa de espinhos seria pouco. Chibatadas? Alguém ainda não entenderia. Perder todo o sangue do corpo a ponto de deixar escorrer água das veias? Seria insuficiente.

Se o grão de trigo não morrer, não produzirá frutos. Sábio Jesus de Nazaré. Sábia natureza.

Que para os cristãos a cruz signifique o centro da fé. Para os demais, o símbolo da fábula mais importante de todos os tempos. Para mim, não há mais discussão. Foi a morte de Jesus Cristo, filho de Deus, no alto de uma cruz de madeira que deixou tudo claro como um céu sem nuvens: ninguém ama alguém se não exigir de si mesmo algum tipo de morte.

Iniciou a mais importante de todas as semanas.

“Dou-vos um novo mandamento: Amai-vos uns aos outros. Como eu vos tenho amado, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros.” (Jo 13, 36)

Feliz Páscoa a todos!

Juliano RigattiPara quem já amou ou já foi amado
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É só o amor

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“Meu objetivo é te preparar para o futuro, não ser amada por você.” Frase de Amy Chua, autora do livro Battle Humn of the Tiger Mother (Hino de Batalha da Mãe Tigresa, em tradução livre).

No início do ano, a mídia brasileira e internacional dedicou espaços generosos ao polêmico livro Battle Humn of the Tiger Mother, de Amy Chua, que conta como a autora, uma mãe chinesa, criou suas duas filhas. A obra causou muito espanto pela rigidez dos métodos de educação praticados. Não li o livro, mas Caio Blinder, colunista de Veja, contou à época que na obra “há relatos de como ela inferniza a vida das duas filhas para serem nota 10 (como a mãe). Foram criadas sob regras que alguns mais histéricos dizem equivaler a abuso infantil. As garotas devem ser  primeiro lugar em tudo (não apenas na escola), agir com perfeccionismo até para escrever um cartão de feliz aniversário e ter uma vida de quartel: nada de televisão, vida social ou dormir na casa das amigas, além de tocar piano e violino com padrão Carnegie Hall (a filha Sophia chegou lá). Quando as meninas não correspondem às altas expectativas, castigos e chacotas da mãe tigresa”.

Vinte e sete anos antes da mãe tigre ficar conhecida, em 1984, um padre norte-americano, Haroldo Rahm, importou de seu país natal para o Brasil um programa chamado Tough Love e adaptou-o ao nosso país com o nome de Amor-Exigente. A metodologia de auto e mútua ajuda desenvolve preceitos para a reorganização da família. Todo o trabalho feito pelos seus profissionais e mais de 10 mil voluntários em todo o país visa aplicar uma metodologia rigorosa de mudança do comportamento humano, que coloca a família no centro do processo. Atualmente, o Amor-Exigente é muito conhecido por ajudar no tratamento de familiares de dependentes químicos.

Mas o que a história de uma mãe chinesa e seu método de educação extremo e discutível tem a ver com uma receita norte-americana reconhecidamente bem-sucedida para recuperação da família de drogados?

Os elos dessa semelhança são exatamente o amor e a família.

É dentro do lar, nessa pequena sociedade onde crescemos, nos desenvolvemos e aprendemos a ser cidadãos, que nasce a maioria dos casos de desvio ético, de corrupção, de criminalidade, de drogadição. Não quero analisar aqui se são corretos os métodos aplicados por Amy. Minha provocação visa trazer à reflexão um questionamento central: que tipo de amor educa?

Pelos relatos que ouço há mais de um ano na Rádio Aliança participando do programa Escolhe, pois, a Vida (que discute prevenção e recuperação da dependência química) posso arriscar: o amor que educa é o amor que é exigente. Um amor que não é só afeto, que não é só sentimento; um amor que é atitude, comportamento, comprometimento. Quando eu amo, minha forma de agir prioriza a felicidade do outro, e não o meu bem-estar. Este amor ignora o meu prazer e o meu conforto. Com este amor, combina muito mais o “não” do que o “sim”. Um “não” que aponta limites, que ensina responsabilidade. Não um “sim” permissivo em excesso, que lava as mãos, que é condescendente, que inspira a libertinagem e negligencia o bom exemplo. Que autoriza os filhos, esses aprendizes da vida, a legislar dentro de casa, dentro da sala de aula.

Sempre será saudável para pais e mães pensarem sobre que tipo de amor praticam em seus lares. Talvez a história chocante da mãe chinesa nos traga essa valiosa contribuição. Antes que seja tarde.

Nossa sociedade adoece, vítima da violência e das drogas, porque não pratica com seus filhos o verdadeiro amor. Porque não os ensina a alcançar os objetivos, a conquistar a felicidade por seu próprio esforço, a duras penas, percebendo seu papel e seu valor na sociedade. Por estas causas é que luta o Amor-Exigente, representado em Porto Alegre pela Apaex (Associação Porto-Alegrense de Amor-Exigente) e nacionalmente pela FEAE (Federação de Amor-Exigente). Essencialmente, o Amor-Exigente, organizado em 12 princípios básicos e éticos, existe para cumprir o seu lema: “eu o amo, mas não aceito o que você está fazendo de errado”. Viveríamos em outra sociedade se todo filho escutasse isso de seus pais um dia.

Nenhuma família está livre. Ainda que ela fale todas as línguas, as dos anjos, as dos homens, as dos livros, a da tecnologia, se não tiver amor, será como o bronze que soa, ou como o címbalo que retine. Mesmo uma família aparentemente perfeita, que conhece todos os mistérios e toda a ciência; que possui toda a fé, a ponto de operar milagres, se não tiver o amor, não será nada. O amor de verdade é um contentamento descontente, é dor que desatina sem doer. O amor de verdade não tolera atitudes inapropriadas, não se alegra com a injustiça, mas se realiza com a verdade. Só o amor que é reto, que é exigente, tem o poder de recuperar adultos, de transformar crianças, adolescentes e jovens em pessoas sadias, felizes e amorosas.

Juliano RigattiÉ só o amor
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