Pouca infância

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Minha mãe e eu fomos no cinema assistir O Caçador de Pipas. Voltei angustiado. 

Tenha você conhecido ou não a obra – livro ou filme –, a mensagem da história me parece, como dizem, universal. Tipo o controle remoto aquele gigante e cheio de botões coloridos e sem função que se compra quando todos os outros de casa já não funcionam mais. 

Como todo best-seller, a linguagem é fácil. Como poucos, emociona ao tratar da singularidade do ser humano nos seus poucos anos de vida. O afegão Khaled Hosseini, autor do romance, trata a infância de uma forma contundente.

No filme, em diversas cenas, a sensação de estar viajando junto com as pipas é impressionante. O voar desgovernado e o barulho do corpo frágil do brinquedo sendo violentado pelo vento aproximam o espectador do real. Cheguei a pensar que seria nisso que eu pensaria sempre que lembrasse do filme. Não será. 

Parênteses. Posso contar o final? Já adianto, muito mais importante que o final, assim como nos demais casos de enredos de não-ficção, é a trama em si. Portanto, contarei o final, sim. Parênteses. 

Acontece que livro e filme tem finais diferentes. Cada uma das artes, a literatura e o cinema, no uso de seus recursos, evidencia coisas diferentes antes de encerrar o romance. 

Enquanto o livro descreve a sensação de redenção experimentada pelo protagonista, que supera um grande trauma pessoal, o filme nos faz mergulhar na densidade do mal irreversível, da marca irreparável presente em outro personagem. Enquanto o Amir do livro antecede o ponto final da história com uma corrida de braços abertos e sorriso largo nos lábios, o menino Sohrab do filme o observa. Fixa na tela seu olhar quase morto e a dor que o emudeceu. Nada de mais impressionante acontece até subirem as letrinhas. 

“Há muitas crianças no Afeganistão, mas muito pouca infância”. 

É isso, pouca infância. Hassan não teve infância, massacrado pelo preconceito étnico. Sohrab, seu filho, também não viveu como criança porque a guerra o colocou de castigo. E o castigou. 

Tivemos pouca infância no Afeganistão pós invasão russa. Tivemos pouca infância no Vietnã pós norte-americanos e na Alemanha nazista. Mas não é privilégio da guerra. Temos pouca infância também no Brasil. 

Temos pouca infância enquanto continuamos a dar moedinhas no sinal vermelho. Enquanto diminuímos a evasão escolar sem nos preocupar com a qualidade do ensino. Enquanto permitimos que nossas crianças assistam à novela das oito. Enquanto pais não entendem que o “não” de hoje é o limite ético respeitado amanhã. 

Pouca infância. Isso também é sustentabilidade. É insustentável um mundo habitado por crianças com pouca infância. Por crianças sem oportunidades iguais. Sem alimentação suficiente. Sem livros. Sem afeto. Sem. 

O frio já tinha dado as caras e a noite avançado quando saímos do cinema. Não fiquei pensando nos efeitos especiais das pipas voando no céu afegão. Enxerguei Sohrab parado no alto daquela rua. Com os braços caídos e o olhar sem infância qualquer.

Juliano RigattiPouca infância
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Pipas

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Agora sao vinte pras duas da madrugada de um domingo qualquer. Ha poucos minutos, um “plin-plin” no meu celular avisava que a mensagem que eu tinha enviado havia sido entregue nos celulares do Bacon e da Sheila.

Fiz questao de agradecer por terem me presenteado com O Cacador de Pipas, de Khaled Hosseini, do qual acabava de virar a ultima pagina. Depois de muitos suspiros e sensacoes de pavor, indignacao, profunda tristeza e uma alegria que, mesmo pouco familiarizada com lugares e personagens, vinha, assim, gostosa. Eh que ser humano, seja ele qual for, sente e vive o mesmo que a gente. E a empatia acontece. Senti alegria a ponto de molhar os olhos umas tantas vezes.

Pipas nunca tinham formado na minha cabeca imagens muito significativas. Lembro de ter ido comprar papel de seda e ter procurado gravetos nem muito pesados, nem muito frageis. Isso ha uns quinze anos ou mais. Elas nunca sairam do chao. Os fios dos postes de luz sempre as impediram.

Mas hoje — ou a partir de hoje — pipas me dao — ou me darao — medo.

Medo do que essa vida e esse mundo me reservam. Medo de chegar em um tempo em que sentirei saudade. Medo de virar so mais uma vitima dessa vida que nao eh um filme indiano, que nao tem sempre um final feliz e que nao se importa nem um pouco com isso. Essa vida que apenas segue “em frente, como uma caravana de kochis, lerda e empoeirada”.

Bom se a vida fosse como esse livro aqui no meu colo. Se pudessemos pega-la a hora que quisessemos e folhea-la, bem la atras, nos primeiros capitulos. Ver as pessoas de novo, ouvir as vozes, sentir o cheiro, ve-las partir e, em seguida, retornar.

Hoje tenho comigo todos os que amo de verdade. Tenho medo do dia em que nao os terei mais. E vou sentir vontade de folhear as paginas pra tras. Mas nao dara. Nao poderei.

O Bacon e a Sheila responderam minha mensagem. Disseram coisas bonitas. Que bom que eu gostei do presente. Que por mim fariam isso mil vezes. Como Hassan disse. Como Amir disse.

Esses amigos meus casaram-se ha pouco. Coisa de um mes.

Que Deus os conceda uma vida de felicidade. E que esta vida seja boa e justa com eles. E que lhes traga, no fim da vida, o que queremos para todos nos. A saudade de uma vida bem vivida. So pipas de saudades boas de sentir.

Juliano RigattiPipas
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