Espelho meu: Carla Maria Beal

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Desde muito cedo, Páscoa pra mim significa liberdade. Não a liberdade de quem saiu de uma penitenciária; nem a liberdade de quem deixou de trabalhar em um regime análogo ao escravo. Liberdade mesmo. Como cristão, procuro aprender com o comportamento de Jesus Cristo, que, vencendo a morte, nos deu provas de que é possível vencermos coisas bem menores que ela, como a insegurança, o medo, a tristeza, a preguiça, a intolerância, o desrespeito, o preconceito. Pode-se viver apesar de tudo que nos faz mal e faz mal a quem está ao nosso redor. Isso é liberdade.

E sabe porquê essa introdução está aqui, neste post em que entrevisto minha dinda Carla Maria Beal? Porque a minha dinda Carla, até antes da Páscoa, quando a Páscoa ainda era só chocolate pra mim, a Carla já era um símbolo de liberdade. Minhas memórias são da infância. E a memória de uma criança deve ser tão sincera quanto a própria criança. A Carla é liberdade pra mim pelo seu jeito, pelas escolhas que fez, pelas filhas que criou, pela pessoa que é, pela massa ao pesto que cozinha.

Este verão, tive o prazer de revê-la depois de muitos anos. Acho que eu ainda era só uma criança quando tínhamos nos encontrado pela última vez. E comprovei que a memória dos pequenos é mesmo muito honesta.

Não conheço a fé da minha dinda; nem sei se é a mesma que a minha. Isso minha memória não guardou. Mas este é o meu post de Páscoa. Porque Páscoa é, antes de tudo, acima de tudo, liberdade. Uma liberdade que te faz bem e que faz bem aos outros. Uma liberdade que faz acreditar que está nas nossas mãos o rumo das coisas ao nosso redor.

Ah, o aniversário da Carla, comemorado neste Sábado de Aleluia, foi o motivo que me fez tirar da gaveta essa entrevista inédita concedida pela Carla à Uzina em fevereiro de 2010, quando ainda morava na Itália.

Boa leitura!

***

Minha dinda Carla

Nome completo:
Cala Maria Beal

Idade:
45 anos, 46 em 23/04/2010

Onde nasceu:
Luzerna, antigo distrito de Joaçaba, hoje município (uau!).

Onde mora hoje:
Mini apartamento na Via Picà, n. 2, Santo Andrea, Castelfranco Veneto, Italia.

Porque a Itália pra morar?
Pelo desejo de mudar tudo, encontrar alguém dentro de mim e dar valor a esse.

Há quanto tempo estás fora do Brasil?
Dois anos (dois verões e um inverno que parece não ter fim).

Pretendes voltar para morar aqui no Brasil? Onde?
Sim. Desejo uma casa com varanda, flores na janela, vizinhos simpáticos pra conversar. SC, Ceará, não sei meu futuro. O presente é incerto.

O que já conheceste aí? Que países? Que lugares bonitos?
Na Itália, visitei cerca de 50 pequenas cidades ou vilas (sempre de bike). Estive na Croácia e amei as montanhas de lá, o vento frio, água do mar limpinha, organização e higiene. Visitei “Luzerna” na Suíça, me senti em casa e feliz. Fui na Alemanha, Immenstad. A grama deles é bem mais verde que a nossa!

E o que de bom já comeste?
Na Italia: a pizza, onde quer q vc vá a pizza á boa de doer. Na Croácia: arraia assada na grelha e verdura refogada (bem diferente da nossa, mas boa). Na Suíça: brezel, rosca crocante, saborosa e cheia de sal grosso grudado. Na Alemanha: wurstel (salsicha cozida na água), boa mesmo!

O que significa Luzerna pra ti?
Ponto de partida, ninho, fogão à lenha, escola de primeiros voos.

Se fechas os olhos e pensas na paz, que lugar vês?
Vejo um lugar onde todos são iguais, onde não existe fome, nem dor. Onde a justiça não se discute, existe e pronto.

E a minha avó, a dona Araci, que lembranças tens dela?
Papos longuíssimos, histórias incríveis e irresistíveis. Aventuras de menina q sabia o que queria e fez o que quis, no seu possível. Tive o carinho e a atenção dela, retribuí na mesma moeda. Saudade, tanta.

A palavra mais bonita da língua portuguesa:
Alimento. Abundância dele e distribuição igualitária.

A mais bonita em italiano?
Auguri! (saudação que deseja sorte, felicidade)

A mais feia:
Cattiveria (maldade)

O pior defeito da nossa sociedade:
Desrespeito aos direitos humanos. Acabei de ler sobre campos de extermínio. Não durmo bem depois disso.

Como achas que os outros te vêm?
Alguns me vêem como alguém solar (alegre) e riem comigo, outros só me veem de leve, não me ouvem, não têm tempo pra perder, têm pressa, mal sabem eles q vamos em círculo, melhor rir de nós mesmos e com os outros. O tempo passa voando, é bom aproveitar a brisa.

Qual tua idéia de domingo perfeito?
Acordar com as galinhas, ir à missa à pé. Cantar e meditar. Voltar pra casa, comer churrasco e maionese com amigos e família

O que queres estar fazendo e onde queres estar vivendo com 60 anos?
Quero estar andando de bike numa estrada segura, com mto vento na cara. Pode ser na China.

Como desejas que as Pupis estejam com a idade que tu tens hoje?
Felizes, saudáveis e cheias de ideias coloridas, barulhentas e risonhas.

O que é o amor?
É olhar nos olhos, sentir com os olhos, tocar com os olhos.

Qual tua memória mais antiga?
Um filme q não lembro quase nada, mas eu tava com meu pai no cinema em Luzerna, feliz da vida, era domingo e chupei picolé na saída.

Qual tua idéia de felicidade?
Ter trabalho, fazê-lo com prazer, ganhar pra fazê-lo e fazer sempre.

Onde gostarias de viver hoje?
Num lugar onde eu nunca fui, mas ter comigo quem é feliz perto de mim.

Onde gostarias de passear agora?
Em Viena, numa praça cheia de história.

O que deixarias de fazer se a Internet acabasse?
Usaria mais o telefone, gastaria mais créditos pra falar com meus amores do Brasil.

Se pudesses eternizar alguém, quem seria?
Eternizaria a memória, a consciência coletiva. Sei que ninguém é eterno.

O que é a morte pra ti?
Ritual de passagem obrigatória, onde as lágrimas lavam a dor da saudade.

O que tu fazes que te dá muito prazer?
Faço paredes de papel. Tinjo lençóis e fronhas. Estendo roupas pra secar. Adoro varais cheios ao sol e ao vento.

O que fazes para espantar a tristeza?
Ando de bike em velocidade, adoro adrenalina natural produzida por mim.

Um filme:
Forrest Gump

Um livro:
Il treno dell’ ultima notte (Dacia Maraini, fortíssimo)

Um cheiro:
Basílico (Mangericão)

Um lugar:
A vista da minha janela, cruzamento em frente à minha casa.

Um site:
Google, meu parceiro fiel.

Uma coleção (que tens ou já tiveste):
Gravuras, fotos da expressão facial feminina.

Um doce:
Doce de abóbora, que fazia minha vó.

Uma bebida:
Cerveja Franssiscanner, uma alemã q se bebe aqui, é a melhor q já bebi até hoje.

Um prato:
Pizza di radicchio di treviso. É incrível como uma verdura na pizza pode ficar fantástica assim!

O que já cozinhou de mais extravagante?
Pé de porco com repolho refogado. É feio, mas é bom!

O conselho que nunca esqueceu:
“Com a verdade não se engana ninguém!”, dizia sempre meu velho pai, Paulo Beal

Um pensamento:
“Quem tem boca vai a Roma, Paris, Nova York… mas, em boca fechada, não entra mosca!”

[youtube http://www.youtube.com/watch?v=lk59cCOB9BI]

Juliano RigattiEspelho meu: Carla Maria Beal
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Bento e seus limites – parte 1

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Como o nascimento, tem uma outra cena do meu afilhado, o Bento, que, suponho, jamais esquecerei. Estávamos todos brincando com ele, ele com pouco mais de um ano, quando pôs-se de pé.

Sorriso nu e faceiro no rosto, corpo instável sobre duas perninhas que pareciam não estar preparadas para suportar aqueles poucos quilogramas. Bento cambaleava. Bento parecia ter sido embriagado. E sorria. E a expectativa de todos é que ele desse o primeiro passo, e depois o segundo e o terceiro. Estávamos posicionados em lugares opostos da cozinha, e cada um, em seu íntimo, imaginava-se agachando e esticando os braços para recebê-lo. Achávamos que ele caminharia cada vez que colocava-se na posição ereta, conquista de nossos ancestrais. Ele sorria de novo, as bolinhas escuras dos seus olhos iam de um lado pro outro, alegres como a boca. Mas Bento sentava-se repentinamente, num tombo, e parecia feliz.

Bento repetiria aquela posição muitas e muitas vezes até fortificar-se, até caminhar. Ao contrário dos demais, era a aparente indecisão que me encantava, quando ele sorria pra nós e parecia dizer: “Uma hora dessas eu vou caminhar, vocês vão ver. E quando eu decidir caminhar, preparem-se, senhoras e senhores”. E caía de bunda.

Tem uma história bonita sobre a vida da gente que nos compara a pratos de porcelana. E diz que a gente precisa decidir crescer e transformar-se em pratos grandes, mesmo que, maiores e com menos controle de nosso corpo no espaço, aumentemos o risco de rachar, de quebrarmos, de produzir rachaduras. Mas precisamos decidir por crescer. Precisamos nos colocar à prova. Para não corrermos o risco ¬¬– termina a bela história – de sermos úteis apenas para acomodar a sobremesa dos convidados. E quem convida alguém para servir apenas a sobremesa?

Todos temos limites, bem sabemos. Uns querem mais que os outros transpor essas divisas e ver logo, de uma vez, o que há do outro lado. E como serão quando chegarem neste outro lado. Outros, ao contrário, preferem ir vivendo a vida, cuidando para não se aproximarem das demarcações, das fronteiras do caminho. Um caminho que, nenhum dos dois, sabe bem qual é.

Uma criança ainda não sabe, mas caminhará. Mais cedo ou mais tarde, caminhará. Caminhará quando seu corpo, quando sua estrutura óssea, estiverem preparados, quando seu cérebro estiver suficientemente adaptado ao mundo dos gigantes. Agora, diferentemente ao ato de caminhar e falar, por exemplo, há decisões na nossa vida, a de crescer e transformar-se de prato de sobremesa para prato de refeição, que depende só da gente mesmo. A gente é que decide encarar os desafios da vida, explorar o desconhecido para nos tornarmos mais fortes, mais testados, mais experientes.

Aprendi que o mais importante é a consciência de que a decisão de ficar ou de partir estará sempre nas nossas mãos. Seremos arrojados ou conservadores se assim o quisermos. É diferente do trio de sabiás que nasceu num ninho no pátio aqui de casa e que partiu esses dias. Nem pudemos curtir direito o momento sublime. Depois dos ovinhos, vieram as criaturinhas peladas, famintas e de olhos fechados. Víamos quase sempre com pescoço esticado, bico aberto para cima, à espera da chegada da comida, que a mãe trazia aparentemente no horário marcado. Logo em seguida, transformaram-se em pequenos pássaros, de penas novas, testando o ambiente em que nasceram para poder voar para longe dali.

Se o sabiá – a magestade, o sabiá – já encanta por seguir a risca o script de sua vida, mais cativante ainda é a história de uma criatura que depois que caminha e fala, porque assim quer a sua natureza, decide por sua conta e risco os caminhos que quer seguir. Nós escrevemos as nossas vidas a cada decisão, a cada “sim”, a cada “não”, a cada proposta, a cada cerveja que combinamos tomar com um amigo. Seja você cristão ou não, quero dizer que Deus nos criou e nos deu a liberdade. E será só nosso o mérito de como viveremos essa liberdade de explorar o mundo e suas infinitas possibilidades.

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=695RHHulK5I&fs=1&hl=pt_BR]

Juliano RigattiBento e seus limites – parte 1
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O livre arbítrio do Bento

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Minha mãe disse à noite passada mais ou menos o seguinte: pra mim, o Bento nasce hoje, hoje de noite. Eu sorri desconfiado enquanto meu pai a advertia: é cedo, Ema, tu sabes que é cedo.

È cedo mesmo. Mas não pelas explicações obstétricas, naturais, fisiológicas e lógicas. Sabem qual a explicação? A seguinte.

Pra quem ainda não sabe, Bento é o nome do meu primeiro sobrinho – e primeiro filho da minha irmã e primeiro neto dos meus pais – que está para nascer por esses dias. Os médicos deram ao Bento um prazo: nove de abril. Daqui cinco dias, portanto.

Minha irmã me disse esta data quando contou que não faria cesariana. Que aguardaria.

Minha irmã aguardará.

Minha irmã transferiu ao Bento o poder de decidir. Bento está experimentando o livre arbítrio.

É estranho dar-se conta de que está tão perto ao mesmo tempo em que ninguém sabe quão perto está. É como brincar de esconde-esconde e sentir a adrenalina quase te paralisar com medo da surpresa de alguém que pode aparecer de qualquer lugar, a qualquer momento. É como mergulhar no escuro do filme de suspense, aguardando a movimentação repentina da câmera e a surpresa do vilão. É como isso.

Ninguém de nós sabe o dia, ninguém sabe a hora. Só sabemos que até nove de abril o Bento, o primeiro entre todos os gaúchos que vibrará igualmente com gols colorados e com gols gremistas, até nove de abril o Bento nascerá.

Ele nos tem nas suas pequeninas mãos. Cada um de nós e as nossas mais íntimas fantasias de como ele será, de quando será. Talvez espere o fim deste final de semana, talvez não. Talvez esteja se preservando do Grenal, talvez não. Talvez esteja aguardando para vir no exato dia do nascimento de sua mãe, segunda-feira, talvez não. Quase posso exagerar e dizer que nem Deus sabe. Apóia e viabiliza a decisão que ele tomar, mas não participa. A sensação que temos é que ele é quem decide. O próprio Bento. O Bento é que nos tem nas suas frágeis mãos.

Tenho vontade de dizer que ele aproveite e fique mesmo até o dia nove. E seja pontual. Porque talvez nunca mais, na sua longa e saudável existência, o Bento ostentará tamanha autonomia. Talvez nunca mais ele possa, com tanta independência, determinar o momento em que dará rumo à sua própria vida. Nem mesmo num emprego que lhe dê carro e uma sala envidraçada com ar-condicionado e apontador de lápis automático. Nem quando estiver solito em seu apartamento, vendo um filme e tomando uma cerveja. Nem a solteirisse aos trinta anos dará ao Bento o que ele possui neste momento. Nem.

É por isso que vos digo: não será hoje. Nem neste final de semana. Deram ao Bento o prerrogativa do livre arbítrio.

Encolhido em frente ao seus grandes pés, o Bento está simplesmente gozando de um direito o qual tentará reconquistar durante boa parte de sua vida aqui: a liberdade.

Pé do Bento

O pé do Bento

Juliano RigattiO livre arbítrio do Bento
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