Sotaque e esforço: ilustres passageiros há 18 anos

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Pois então. Esse é o quinto texto da série de textos meus do tempo de faculdade. Tempo esse de muitas observações e de muitas novas experiências lúdicas que só a academia pode proporcionar ao ser humano. O texto abaixo foi escrito sob inspiração de uma dessas novas experiências, neste caso o Jornalismo Literário. A proposta da professora era que passássemos um dia inteiro com alguém sobre o qual tinhamos resolvido escrever. Meu vida profissional estava intensa em outubro de 2003 e não pude passar um dia inteiro com o tio Roque, kombista em Canoas há muito, muito tempo. Mas o que está abaixo fala com honestidade sobre a vida deste homem. Fiquem à vontade.

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Sotaque e esforço: ilustres passageiros há 18 anos

Canoas, 2003. Região metropolitana de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Seu Roque espera o relógio marcar 5h40. Logo está de pé para tomar seu chimarrão e zelar pela horta e pelas muitas espécies de árvores frutíferas que cultiva no fundo do pátio onde mora, na rua Expedicionários, a poucos metros da escola Espírito Santo. Atrasados pelo horário de verão, só uma hora depois é que os primeiros raios de sol começam a pintar no chão de basalto as sombras das árvores cultivadas ao redor da grama, no meio das flores. Pontualmente, seu Roque aciona o portão eletrônico, enquanto conduz sua Topic prefixo 35. Da garagem até a ponta do pátio, um longo caminho de pinheiros-ouro o acompanha. O portão abre passagem à esquerda e acena para mais uma viagem. Este mês, tio Roque, como é chamado por uma de suas alunas, completa 57 anos de vida e 18 de transporte escolar. Com o forte sotaque da língua alemã, que falou até a juventude, orgulha-se. “Fez 18 anos em agosto que eu trabalho no transporte escolar e eu não faltei um dia. Nem na morte da minha mãe. Minha mãe morreu na quinta de noite e fizemos o enterro só no sábado de manhã. Porque eu não posso falhar e deixar as crianças. E, em 18 anos, nunca nenhuma delas se machucou nas minhas Kombis.” Em agosto de 1985, com uma Kombi ano 1976, prefixo 06, seu Roque fez seu primeiro transporte escolar.

São Paulo, 1822. A proclamação da independência, em 7 de setembro, tinha gerado o desagrado não só junto às autoridades em Portugal como dentro do Brasil. No entendimento da Coroa Portuguesa, nosso país deveria voltar à condição de simples colônia. Com a preparação das forças militares portuguesas para invadir o Brasil, nosso exército teve de ser reforçado. Não tínhamos homens suficientemente preparados. Para ocupar as cerca de 4.000 vagas abertas nos Batalhões de Estrangeiros, apenas 200 soldados rasos haviam se apresentado. Era necessário, portanto, trazê-los do exterior. Johann Anton von Schaeffer foi o homem recomendado pela Imperatriz D. Leopoldina para transportar os primeiros soldados e colonos alemães para o Brasil.

Com o major Schaeffer – um senhor de 42 anos – no comando da operação iniciada em 1823, no porto de Hamburgo, 27 expedições chegaram ao Brasil entre 1824 e 1829. O embarque dos alemães nos veleiros de três mastros, que o próprio major havia providenciado, só acontecia quando a embarcação estivesse devidamente adequada para o transporte de pessoas. Para a época, os navios eram confortáveis, equipados com tudo que é necessário para cuidar da saúde e da higiene dos passageiros. Mortes durante as viagens eram inevitáveis, mas nunca foram causadas por má alimentação ou falta de condições de higiene. Nesses primeiros anos, o major Johann Anton von Schaeffer esteve sempre à frente do processo migratório. O primeiro veleiro, chamado Argus, saiu do porto de Hamburgo em 27 de julho de 1823 e chegou ao Rio de Janeiro, trazendo 284 imigrantes, em 7 de janeiro de 1824.

Neto de um alemão, Cacildo Roque Weschenfelder, o seu Roque transporta crianças para escolas e creches de Canoas faz 18 anos. Há pouco menos de dois séculos, major Schaeffer era o responsável pelo transporte dos primeiros alemães ao nosso país. Dois homens unidos por providência da História e pela semelhança de seus ofícios.

6h40 em ponto. Enquanto sobe a rua Expedicionários, o barulho do motor parece despertar o sol e as centenas de sabiás que dormem nas copas das árvores crescidas na calçada. “Olha aquelas duas senhoras ali caminhando. Sempre encontro elas. E sempre no mesmo horário. Na volta, encontro elas de novo”, conta seu Roque, apontando para as duas senhoras, enquanto deixa à direita a escola Espírito Santo.

Até as 7h30, ele precisa embarcar, ao todo, nove crianças. A menor fica na creche municipal vovó Babali, algumas delas na escola Espírito Santo, e o restante no colégio Cristo Redentor. Nos turnos da tarde e da noite, seu Roque faz transporte ainda para as escolas municipais Duque de Caxias e Farroupilha, e para escola estadual Protásio Diogo de Jesus. O primeiro aluno da manhã é Israel, 12 anos. Estuda na sexta série do Ensino Fundamental do Cristo Redentor. Mora no bairro Estância Velha. Para seu Roque, mais um dia começou.

Em Canoas, 45 veículos – Kombi ou similares – estão autorizados a fazer transporte escolar, segundo informações da Secretaria de Transportes do município. Ao todo, cerca de 800 crianças utilizam o serviço. O valor cobrado pelos kombistas é sempre resultado do acordo entre os pais do aluno – ou ele mesmo – e o prestador. Desde 1985, já passaram pelas Kombis do tio Roque mais de 2.000 alunos. Hoje, ele transporta 40, divididos entre o turno da manhã, da tarde e da noite. Diante da grande responsabilidade própria do ofício, seu Roque não esconde o desgaste: “Puxar aluno é um sofrimento muito grande. Às vezes, penso em parar. É muita preocupação. Eu durmo cinco horas por noite. E, chegando aos cinqüenta, tu vais sentindo o cansaço, e começa a sentir o peso da idade, como se diz. Ainda semana passada eu estava que não agüentava mais meu nervo ciático”.

Segue a viagem. seu Roque já está no bairro Estância Velha, a poucas quadras da casa de Israel. Ele diminui a velocidade e olha para a calçada. “Está vendo aquele ipê-amarelo ali?”, pergunta, esticando o braço direito. “Fui eu que plantei, em 1971, quando morava naquela casa ali. Lembro que daqui pra frente era tudo açude. Morei cinco anos naquela casa.”

Seu Roque nasceu no dia 19 de novembro de 1946, na Comunidade de Piedade, distante 70 km de Porto Alegre. Filho do casal Francisco José Ebelhalb Weschenfelder e Rosalina Isabela Atz Weschenfelder, ouvia sempre de seu pai que o avô e um tio-avô vieram da Alemanha para o Brasil. A Comunidade de Piedade, hoje com 1.400 moradores, quase todos descendentes de alemães, pertence aos municípios de Bom Princípio e São Vendelino, ambos a cerca de 80 km da capital do Rio Grande do Sul.

Passou a infância inteira em Piedade. Em 1º de maio de 1967, com 20 anos, convidado pela irmã, seu Roque mudou-se para Canoas para tentar uma vida melhor. O primeiro emprego na cidade durou 10 meses. Trabalhou como ajudante do ônibus da escola Maria Auxiliadora, no centro de Canoas. Foi ainda em 1967 que seu Roque conheceu Neuza Mariotto, com quem se casou em 2 de outubro de 1971. Dos sete filhos que tiveram, quatro são falecidos. Os outros são Ana Márcia, 30 anos, Jorge Alexandre, 27, e Marcos Alexandre, 22. Seguindo o ofício do pai, Marcos e Ana Márcia também trabalham com transporte escolar. “A Márcia ficava na minha Kombi desde seis, sete aninhos. Ela tem vocação pra criança. Ela, com aquela idade, já ficava comigo, ela abria e fechava a porta, cuidava dos alunos e eu tinha a maior confiança nela.”

Antes de entrar para o transporte escolar, seu Roque trabalhou ainda como pedreiro. Também foi encarregado de serviços gerais durante 14 anos na escola Espírito Santo, onde teve sua primeira experiência conduzindo uma Kombi.

Seu Roque acena para a mãe de Israel. Arranca a Topic. Os próximos a embarcar serão João, 11 anos, Alda e Franciele, ambas com 14. João estuda na quinta série do colégio Cristo Redentor. As gurias, na oitava série da escola Espírito Santo. “Faz tempo que tu andas com o seu Roque, Alda?”, pergunto. “Desde a quarta série”, lembra a guria. “E você, Franciele?” A resposta demora um pouco. Vem baixinha do fundo da Topic: “Sexta, eu acho”.

Depois de Israel, João, Alda e Franciele, seu Roque pára na rua José Bonifácio, bairro Nossa Senhora das Graças. Desce da Topic para pegar o seu passageiro mais novo da manhã. Pedro, 6 anos, recebe um beijo da mãe para, em seguida, segurar a mão de seu Roque. Logo está sentado. De casa até a creche vovó Babali nada se ouve dele. “Já fazia dois anos que eu levava ele e ainda não tinha ouvido a voz dele. Mas dizem que na creche é um terror”, conta seu Roque, enquanto senta, fecha a porta da Topic e afivela o cinto de segurança.

Logo após levar Pedro à creche, seu Roque pega Mateus, 12 anos, aluno da sexta série da escola Espírito Santo. Às 7h15, pára em frente ao colégio Cristo Redentor para o desembarque dos primeiros três. Dali, a viagem continua até o bairro Cidade Nova, onde embarcam os irmãos Caroline, 10 anos, quinta série, e Jorge, 7, primeira série. Ambos estudantes da escola Espírito Santo. Na rua Santa Maria, seu Roque pára em frente à casa do último aluno e, como de costume, buzina e aguarda. Sem resposta, sai da Topic e, em segundos, retorna. “O Lucas não vai.” “Ele está doente?”, pergunta uma das crianças. “Não sei… acho que sim, a mãe disse que ele não vai”, responde seu Roque.

Às 7h25, cinco minutos antes do início da aula, a Topic prefixo 35 chega à escola Espírito Santo. Os mais velhos logo descem, despedem-se e somem. Os mais novos são conduzidos por seu Roque pela faixa de segurança. Quando chegam na calçada, logo saem correndo e desaparecem no meio das outras crianças.

Fechada a porta da Topic, às 7h30 sobrevém o conhecido sentimento do dever cumprido. Em alguns instantes, o sinal sonoro da escola Espírito Santo vai indicar o início de mais um dia de aula. Mesmo sem as crianças na Topic, seu Roque continua a andar devagar, com prudência. Antes de dobrar à esquerda, no final da quadra, aguarda a passagem de um carro e reencontra as duas senhoras que também apontam na esquina, retornando de sua caminhada matinal.

Como de costume, seu Roque pára na padaria para comprar os pães pro café da família. Às 7h40, chega em casa. O portão eletrônico cumpre o ritual de recepção. Em seguida, a Topic prefixo 35 está novamente estacionada na garagem, ao lado da Kombi, ano 1997, prefixo 39.

Quando o relógio da cozinha marcar 11h, uma delas estará só novamente. Para seu Roque, o dia terá começado mais uma vez.

Juliano RigattiSotaque e esforço: ilustres passageiros há 18 anos

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